Rodrigo Fonseca
Embora a versão live action de “Dumbo” tenha ficado aquém das expectativas dos exibidores, Tim Burton não perdeu sua relevância como contador de histórias, nem viu seu prestígio junto à imprensa diminuir, como comprova a sessão especial que a revista “Positif”, uma das Bíblias da literatura cinéfila, preparou em tirbuto ao cineasta americano, tendo “Batman, o retorno” (1992) como seu objeto de debate. O evento vai ocorrer na França no dia 21 de maio, na sala Grand Action (5, rue des Écoles, Paris V). Passaram-se 27 anos desde a estreia desta produção Warner Bros. de US$ 80 milhoes, lançada na rebarba do êxito comercial do seminal “Batman” (1989) e coroada com uma bilheteria de US$ 267 milhoes. Numa era pré Christopher Nolan, um jovem Michael Keaton viveu o Homem-Morcego, dublado no Brasil pelo genial Nilton Valério. Michelle Pfeiffer e Danny DeVito tiveram atuações memoráveis no longa-metragem, repaginando os criminosos Mulher-Gato e Pinguim como nem as HQs conseguiram. Na festa dos Oscars, em 1993, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood deram ao filme duas vagas na disputa por prêmios, numa corrida pelas estatuetas de Melhor Maquiagem e de Melhores Efeitos Espaciais. A presença de Christopher Walken como um rico investidor, rival de Bruce Wayne (o alter ego do Morcegão), trouxe ainda mais charme para o longa, que volta agora à ribalta, em meio aos eventos comemorativos dos 80 anos do Batman. E essa volta ajuda a ampliar a visibilidade das marcas autorais de Burton como diretor.
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Existe um visual circense em toda a obra de Timothy Walter Burton desde sua estreia na direção de longas-metragens, com “As grande aventuras de Pee-wee”, em 1985, só que a tônica afetiva sob sua lona é ditada pela carência, pelo desemparo. Pee-wee só conseguia sorrir se cercado de amigos, dada a ausência de maturidade em sua solitária formação. O Bruce Wayne que delineou com Michael Keaton, entre 1989 e 1992, era um órfão que mascarava sua solidão num combate ao crime. E o que mais dizer de seu pierrô apaixonado, Edward Mãos de Tesoura, que não algo ligado à falta do pai, de dedos e dos beijos de Winona Ryder? Sua opção em refilmar “Dumbo” (1941), dando ao paquiderme animado um coletivo de carne e osso e talentos (como os de Danny DeVito, magistral como o mestre de cerimônias de um circo decadente), explica-se no olho marejado de seu protagonista voador. Sua releitura preserva toda a dimensão fabular do desenho animado homônimo dos estúdios Disney, mas recheia os conflitos do elefantinho e seus amigos com uma dor que é constitutiva da linha autoral de seus filmes: a dor da inadequação. Temos um picadeiro de pessoas sem pertencimento, feito Burton, um cineasta singular, que, aqui, alcança o ápice do talento.

Como na animação, Dumbo é um bebê que se destaca dos demais elefantes por suas orelhas gigantes, capazes de fazê-lo voar, o que faz dele a atração do espetáculo de Max Medici (DeVito, em atuação digna de Oscar). Mas seu brilho vai atrair a cobiça de investidores cruéis, como o magnata Vandevere (Keaton), sempre acompanhado de uma namorada francesa, a equilibrista Colette (Eva Green). Numa atuação impecável, capaz de mesclar sedução e fragilidade, a estrela de “Os sonhadores” (2003) cresceu, e muito, como atriz, e injeta camadas de angústia à figura de uma estrela que perdeu sua pátria e seu respeito próprio. Seu duo com Colin Farrell, no papel de um vaqueiro que atua como faz-tudo no circo, evoca a tradição romântica da Hollywood dos anos 1940, galvanizada com a canção “Baby Mine”, em versão Arcade Fire.

Nota-se, desde “O Lar das Crianças Peculiares” (2016), uma evolução formal (algo notável para um diretor reconhecido por sua concepção cenográfica sofisticada) no léxico de Burton. Ele, em “Dumbo”, dialogan com uma tradição perdida de clássicos aventurescos de fantasia do cinema europeu e não do americano. Tem um cheiro de “A Lenda dos Anões Mágicos” (1959), com Sean Connery, e um quêzinho de “Pele de Asno” (1970), de Jacques Demy. Mas tudo isso com correrias, com animais inquietos e com um vilão de uma maldade corrosiva, encarnado por um Michael Keaton cheio de avareza. Na ausência de seu muso, Johnny Depp, Burton anda estabelecendo parcerias muito ricas, como se viu no desempenho de Christoph Waltz em “Grandes Olhos” (2014), ou na atuação melancólica de Farrell.

Ainda na França, o Festival de Cannes começa em algumas horas: “The dead don’t die”, de Jim Jarmusch, abre a maratona cinéfila.