Rodrigo Fonseca
Tem uma novíssima, e inspirada, geração de diretores italianos chegando às telas a fim de restaurar o prestígio que a terra de Fellini um dia teve, entre o neorrealismo e a ascensão de Silvio Berlusconi, nos anos 1980: Laura Lucetti (“Fiore gemello”), Edoardo De Angelis (“Il vizio della speranza”) e Diego Marcon (com a animação “Monelle”) andaram estourando mundo afora em 2018. Mas depois de ontem, quando o 69º Festival de Berlim conferiu “Piranhas” (“La Paranza Dei Bambini”) na briga pelo Urso de Ouro, o nome da Itália que salta para o estrelato é o de Claudio Giovannesi, diretor romano de 40 anos. Fala-se de Urso de Prata, na forma de um prêmio especial de júri, ou até de um troféu coletivo para seus (não) atores mirins, todas as vezes em que este espetáculo etnográfico e sociológico é comentado. Trata-se de um rasante na dinâmica da máfia napolitana, escrita por Roberto Saviano, escritor jurado de morte pela Camorra responsável pelo marco histórico “Gomorra” (2008). Ele aqui acompanha a jornada de perda de inocência de um grupo de jovens seduzidos pela criminalidade, tendo como líder Nicola (Francesco Di Napoli). Espera-se apenas que Giovannesi não seja esquecido pelo júri presidido por Juliette Binoche, como aconteceu ano passado com “Minha filha”.
Antes que se embrenhar pelas veredas do melodrama, deixando a bússola do racionalismo para trás, “Minha filha” sequestra a atenção e o fôlego do espectador por caminhos geográficos: a paisagem da Sardenha toma conta da tela a partir de uma mirada quase neorrealista. Na direção, a romana Laura Bispuri busca os invisíveis, os anônimos, o povo com o colorido suarento e esbaforido do dia a dia – parece a delicadeza de Vittorio De Sica em “Umberto D.” (1952). Reconhecido o terreno, começa a ficção, que trilha um terreno bíblico. Evoca-se o mito de Salomão: o rei foi consultado por duas senhoras, que reclamavam o direito de ser mãe de uma criança, e ele sugeriu que o bebê fosse cortado ao meio, a fim de ficar um pedaço para cada uma. Pelo julgamento de Salomão, a mulher que se recusasse a ferir o bebê seria a mãe. Esta é a premissa que a realizadora de “Vergine giurata” (2015) resgata (e revive) em uma dramaturgia capaz de evitar obviedades, aliada a um refinamento visual arrebatador, que deve ser creditado à fotografia de Vladan Radovic. A Sardenha deste longa-metragem – indicado ao Urso de Ouro no Festival de Berlim, em fevereiro – é um lugar de pesca e de criação de cavalos, lar de um povo alheio às transformações culturais das metrópoles ao seu redor. Um povo que poderia ser chamado de rústico, mas que é, apenas, aferrado a suas raízes, um pouco como a aldeia de pescadores de “La terra trema” (1948), de Luchino Visconti. O filme de Bispuri não é preso a amarras documentais, nem depende de não-atores. Pelo contrário, “Figlia mia” é um longa que serve de apoteose para grandes atrizes (Valeria Golino, Alba Rohrwacher) afirmando o traço autoral da cineasta: apresentar mulheres fortes em ambientes tradicionalmente dominados por grosseirões.
Há uma sequência catártica em que a realizadora expõe todo o seu ferramental técnico e poético: Alba e a pequena Sara Casu, de 11 anos, soltam a voz ao som de “Questo amore non si tocca”, hit da canzone italiana gravado por Gioanni Bella. As duas cantam como se brincassem de karaokê, diluindo as fronteiras de idade e hierarquia familiar que as separam. Alba é a alcoólatra Angélica, uma mulher afeita ao prazer. Sara é Vittoria, uma menina de 9 anos que tem duas mães, uma biológica, a outra, de criação: Angélica de um lado; e a bem comportada Tina (vivida por Valeria Golino) do outro. Ambas as adultas disputam, à sua maneira, o coração da menina, numa história revive os saberes de Salomão a fim de abrir uma discussão (necessária) sobre conciliação. Seu mote: renunciar é, também, um modo de amar.
A Berlinale termina neste domingo. Sábado saberemos quem ganha o Urso de Ouro. “God exists, Her name is Petrunya”, da Macedônia, dirigido por Teona Strugar Mitevska é o favorito.