Rodrigo Fonseca
Ao anunciar a seleção de filmes em competição pela Palma de Ouro de 2019, Thierry Frémaux, o diretor artístico do Festival de Cannes, deixou vazar a vontade de prestar uma homenagem a “O iluminado” (1980) com um colóquio na 72ª edição do evento francês, agendada de 14 a 25 de maio. Na ocasião, o diretor mexicano Alfonso Cuarón, ganhador de Oscars por “Roma” (2018) e por “Gravidade” (2013) e fã do marco do terror baseado em Stephen King, faria na Croisette uma palestra sobre o medo na obra de Stanley Kubrick (1928-1999). O colóquio é parte de uma série de conversações que tomou corpo na programação de Cannes a partir do ano passado, quando Christopher Nolan (“Dunkirk”) conduziu um debate sobre “2.001 – Uma odisseia no espaço”, a fim de celebrar os 50 anos desse clássico das narrativas sci-fi. Foi um papo inesquecível. O anúncio da participação de Cuarón ainda não foi oficializada. Fala-se de uma passagem de Jack Nicholson, astro do horror kubrickano, por lá também. Nicholson deve ainda soprar as 50 velinhas do aniversário de “Easy Rider – Sem destino” (1969) na seção Cannes Classics. Mas nada foi confirmado. Sabe-se apenas que Kubrick tem um lugar cativo no coração cannoise.
Genealogia da moral de “2.001 – Uma odisseia no espaço”, superprodução de custo estimado em US$ 12 milhões cuja estreia no Brasil ocorreu há 50 anos, em 29 de abril de 1968: ninguém dá crédito a Friedrich Wilhelm Nietzsche (1883-1888) pela trama filmada entre os estúdios da MGM Brittish e de Shepperton, na Inglaterra. Foi Nietzeche quem desenhou o simbolismo inerente à reflexão de Kubrick sobre as fragilidades do espírito. Kant não serviria muito, pois para este o conceito de alma não cabia nos verbetes do Imperativo Categórico. Hegel levaria a alma à dialética, o que era mais afeito ao povo do marxismo que enxergava na luta de classes o motor da História. Para Kubrick, a filosofia a golpes de martelo ao autor de “O crepúsculo dos ídolos” (1888) servia melhor, pois neste pensador, nos escritos de “Assim falava Zaratustra” (1883), havia a ideia de que o espírito humano sofria três metamorfoses, em seu ritual de evolução.
Primeiro o espírito é um camelo, que diz “sim” a tudo, em subserviência; depois vira leão, que ruge um “não” para a vida; e, por fim, vira uma criança, que responde ao mundo com um sorriso. Não por acaso, um bebê se desenha na imensidão estelar filmada por Kubrick. A metáfora nietzschiana da essência humana que se transforma continuamente encontrou eco numa leitura que o cineasta (nascido em Nova York, em 1928, e morto em 1999, no solo britânico de Harpenden) fez do conto “The sentinel” (ou “Sentinel of Eternity”), publicado em 1951. A ideia de um artefato “estrangeiro”, um monólito mineral, incrustado no coração da Terra, servindo como um sinalizador de que vida inteligente passou por aqui nos tempos em que nós primatas ainda não inventamos a linguagem, serviu em cheio como inspiração para um tratado sobre os caminhos que a raça humana trilharia. A autoria do conto é de Arthur Charles Clarke (1917-2008), que assina com Kubrick o roteiro derivado de sua premissa literária, à luz de Nietzsche. Dali saiu “2.001 – A Space Odyssey”, cuja bilheteria beirou US$ 190 milhões mundialmente (US$ 56 milhões apenas nos Estados Unidos).
Fora a fortuna na venda de ingressos, vieram indicações para quatro Oscars: direção, roteiro, direção de arte e efeitos visuais, a única categoria que rendeu estatueta ao projeto. Quem assinava a engenharia de efeitos era o próprio Kubrick, mas ele não foi à cerimônia, confiando aos apresentadores do prêmio, os atores Diahann Carroll e Burt Lancaster. Veio daí também a fama de excêntrico de Kubrick, que, até o fim da vida, leu Nietzsche, Freud e outros autores germânicos, como Arthur Schnitzler. “Naquele momento, Stanley criou a mítica de que não falaria mais com a imprensa nem seria visto em público em ambientes de celebridades, para evitar que sua figura fosse mais imponente que a força simbólica de seus filmes”, conta ao Laboratório Pop o decano da crítica francesa Michel Ciment, editor da revista “Positiff” e autor do livro “Kubrick”.
Reza a lenda que, em seu retiro nos confins da Inglaterra, avesso aos assédios de Hollywood, Kubrick certa vez foi procurado por um produtor americano que conseguiu descobrir seu endereço numa conversa com um dos empregados do diretor. Ele apareceu na casa do cineasta levando um projeto milionário, com consentimento de um grande estúdio para oferecer um milhão a ele por seu trabalho. O homem teve acesso à casa do diretor, conversou com um mordomo e este foi avisar ao Sr. Kubrick da visita, que viera direto de Los Angeles. O mordomo desceu, pediu que o produtor se sentasse e esperasse por cerca de uma hora, oferecendo-lhe uísque e acepipes da melhor qualidade. Passou-se uma hora e Kubrick não desceu. Em seu lugar veio o mordomo, com uma passagem para Los Angeles não. Ele entregou o bilhete ao produtor e disse a ele: “O senhor Kubrick lamenta pela sua espera e pela circunstância e lhe agradece. Ele mandou que lhe comprasse esta passagem e demitiu o homem que o trouxe aqui. Por favor, pedimos que o senhor se retire e nunca mais volte, nem conte a ninguém este endereço”.
Verdade ou não, o que temos aqui é mitologia. A mitologia de um cineasta único, que construiu seu legado numa reflexão muito próxima à questão do Poder, seja o Poder político (“Dr. Fantástico”), o aristocrático (“Barry Lyndon”), o mental (“O Iluminado”), o perverso (“Laranja Mecânica”), o da guerra (“Nascido para Matar”) ou o do sexo (caso de “Lolita” e “De Olhos Bem Fechados”). Brincando por entre gêneros dos mais distintos, a arrancar deles o que lhe há de mais sólido, Kubrick executou no cinema uma autópsia em corpo vivo das sociedades anglo-saxônicas, num espelho com o passado (“Spartacus”) ou numa sintonia com o presente (“O Grande Golpe”) de modo a retratar formas de descontrole. Algumas são institucionais. Outra, individuais. Mas a mecânica dele carregava algo de Kafka: metamorfoses no qual o excesso de castração convertia homens em baratas ou monstros. E grandes atores (Jack Nicholson, Peter Sellers, George C. Scott, James Mason, Tom Cruise, Sterling Hayden) deram a ele argamassa para essa construção kafkiana de um castelo de obsessões.
Kubrick vinha da fotografia, do still jornalístico, do tempo daquilo que Roland Barthes chamava de “o lugar do foi aí”, ou seja, do embalsamamento de um instante. No obturador ele aprendeu a enquadrar o mundo flagrando, em seus quadros, aquilo que está por trás de um gesto, na sublimação (ora lírica, ora violenta) dos impasses nossos de todo dia. “2.001 – Uma odisseia no espaço” foi uma reação dele a impasses históricos de 1968: numa época em que os homens se voltavam para dilemas da terra, com suas veias abertas pela mais valia, ele resolveu olhar para o alto, enxergando o que existe na transcendência. Johann Strauss (1825-1899) nunca fez tanto sentido sinestésico quanto no casamento de seu “Danúbio Azul” com as imagens fotografadas por Geoffrey Unsworth (1914-1978), antes conhecido por “Somente Deus por testemunha” (1958) e, depois, oscarizado por “Cabaré” (1972).
Na viagem por Nietzsche e C. Clarke, Kubrick levou ao cosmos Keir Dullea e Gary Lockwood para serem conduzidos pela inteligência artificial HAL numa luta pela sobrivência do homem contra a máquina, mediados pelo sinal do monólito. E o planisfério cinéfilo embarcou com eles nessa jornada. Os russos viram o filme em 1969 no Festival de Moscou e quiseram fazer uma sci-fi igualmente possante. Produziram “Solaris” (1972) para isso, dando ao gênio Andrei Tarkovsky (1932–1986) a chance de mostrar seu cinema metafísico mirabolante, de escultura do Tempo, além das fronteiras da URSS. O que pode ser atribuído ao legado de “2.001”. Em 1984, o subestimado Peter Hyams deu ao cult de Kubrick uma espécie de sequência: “2.010 – O ano em que faremos contato”. Foi achincalhado por isso. Mas essa é uma outra história… de muitas… que cabem na memória de HAL.