Rodrigo Fonseca
Saiu enfim a lista de concorrentes ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de 2019, cuja festa de consagração dos expoentes da produção nacional do ano passado será televisionada pelo Canal Brasil, ao vivo, no dia 14 de agosto: entre todos os filmes classificados para disputar o Troféu Grande Otelo, o recordista de indicações é “Chacrinha – O Velho Guerreiro”. Ele briga em 12 categorias. O segundo longa-metragem com mais indicações (dez) é “O Grande Circo Místico”, de Carlos Diegues. Essa reverência da Academia Brasileira de Cinema à biografia de um dos mitos da comunicação no país gera uma viagem do tempo, à primeira projeção aberta ao público desta deliciosa homenagem a Abelardo Barbosa (1917-1988).
A poucos minutos do início da sessão (antológica) de “Chacrinha – O Velho Guerreiro” no cine Odeon, às 23h4etodos de 1º de novembro de 2018, Andrucha Waddington, seu realizador, cumprimentava a multidão que lotava o templo sagrado da cinefilia carioca, no primeiro dia de Festival do Rio 2018 com uma frase humilde: “É aquilo… apenas uma sessão de meia-noite… tranquila, levinha”. Mal imaginaria ele que a projeção da cinebiografia de Abelardo tornar-se-ia um evento apoteótico, seja pela luta em prol da liberdade de expressão, seja pelo canto ufanista em prol da estima perdida da Cidade Maravilha, seja pelo desempenho pra ficar na saudade de Stepan Nercessian.
De onde se esperava apenas um espetáculo comercial divertido saiu uma curva heroica atípica na atual fase simbólica de representações sociais do cinema nacional: o Abelardo de Andrucha é um Rocky Balboa do circo eletrônico, uma Cinderela tropicalista que troca o sapatinho de cristal por uma buzina de ouro, na trajetória marxista de superação da pobreza. E essa curva abre uma reflexão: em meio ao Fla x Flu qualitativo que a classe cinematográfica nacional se meteu, separando os ditos filmes “de mercado” de filmes “de arte”, produções talhadas para abocanhar bilheterias polpudas não têm direito a disputar prêmios, o que impede atuações memoráveis como a de Stepan de receber uma láurea em mostras competitivas como a Première Brasil. É pena. Confinado nos últimos anos a papéis secundários, Stepan ganhou notoriedade nas telas em 1969, ou seja, há quase 50 anos, ao protagonizar o cult “Marcelo Zona Sul”, um libelo sobre a rebeldia juvenil de Xavier de Oliveira. Desde então, contabilizou participações em filmes míticos, como “Rainha Diaba” (1974) e “A Gargalhada Final” (1979), tendo sido o Querô, de Plínio Marcos em “Barra Pesada” (1977).
Mas a mítica pessoal torno de em sua persona de fanfarrão, fez com que ele custasse a ser reverenciado como um de nossos grandes. Há onze anos, ele iluminou o Festival de Brasília como coadjuvante em “Chega de Saudade”. Depois, em 2012, roubou a cena em “Os penetras”. Mas chegou a hora dos louros: Stepan é, sim, um dos mitos de nosso cinema. Uma espécie de Peréio versão paz e amor, com um talento raro para simbolizar as angústias e as alegrias do povão no cotidiano deste país. Ninguém poderia ser (mais e melhor) Chacrinha além dele. Só Eduardo Sterblitch, que põe muito queixo a cair com sua atuação na pele do jovem Abelardo.

Existe uma curva de redenção na jornada de ascensão, queda e autorregeneração de Aberlardo na linha dramatúrgica estruturada no roteiro de Claudio Paiva, Carla Faour e Julia Spadaccini. Essa curva é similar a que John G. Avildsen (1935-2017) criou para Balboa em “Rocky, um lutador”: o homem que veio do nada com ambição de vencer se esfola nas cacetadas da vida em seu empenho para angariar respeito para seu nome. É uma linha universal fabular que o trio desfia com maestria, apoiado na agulha autoral de Andrucha que deixa bem cerzida na tela sua herança documental e musical. Mais do que isso, ele traz consigo seu interesse no entendimento da lealdade a qualquer preço, um tema comum a seus filmes todos, aqui encarnado na relação de Abelardo com o colega Oswaldo, que valoriza (e muito) o pouco escalado Antônio Grassi. Sua presença em cena (num papel dividido com Gustavo Machado) empresta dignidade às loucuras de Abelardo. É uma atuação discreta, mas charmosa, como tem sido, desde os anos 1990, a utilização de atores veteranos na obra de Andrucha, seja Francisco Cuoco (em “Gêmeas”), Stênio Garcia (“Eu, tu, eles”), Sonia Braga (“Lope”) ou Ângela Leal (“Sob pressão”).
De um lado, vemos a experiência de Grassi e, do outro, vemos a gana de estrelas mais jovens, mas de brilho inesgotável, como Gianne Albertoni, em fina forma, na pele de Elke Maravilha. Como todo bom autor, Andrucha, sempre cuidadoso na composição dos planos, traz a patota de sempre consigo: de sua série médica “Sob Pressão” vieram Pablo Sanábio (em duplo papel) e Thelmo Fernandes, perfeito na pele do Boni. A partir dele, a História desfila seu H maiúsculo na tela de “Chacrinha – O Velho Guerreiro” fazendo desta micareta emotiva uma aula sobre memória da TV, do rádio, da resistência.