RODRIGO FONSECA
Nos tempos em que era colunista do Caderno B do Jornal do Brasil, de 2001 a 2003, Gerald Thomas foi assistir a “Storytelling” (“Histórias Proibidas”), dramédia pontuada a cinismo que rendeu uma indicação ao Prix Certain Regard de Cannes a Todd Solondz, um dos pilares das narrativas indies dos anos 1990. Solondz dizia: “Gosto da ideia das diferentes possibilidades que estrelas podem oferecer a um personagem. Abre todo o tipo de análises combinatórias que não existem no dia a dia, uma vez que, na vida real, só temos uma vida para viver”. Sua reflexão é análoga ao que Marco Nanini brada na peça “Traidor”, em cartaz em SP, no Sesc Vila Mariana, fazendo-se de marionete de si. O que Gerald (em ebulição) arranca do astro (e de um ente por ele encarnado) é uma espécie de palíndromo de si mesmo. É uma persona que, de trás pra frente, de frente pra trás, opera como um espelho distorcido das convicções que outrora teve. Fala em “primavera”, mas esse sujeito cênico se encontra no outono de suas próprias crenças, um outono crepuscular. Vale lembrar de Solondz outra vez, pois de seus filmes mais significativos, com tramas que se olham e se repelem, chama-se “Palindromes” (indicado ao Leão de Ouro de 2004).
Solondz explodiu com “Bem-vindo à Casa de Bonecas” (1995) e “Felicidade” (1998) quando Gerald já era “O” Gerald, tendo defenestrado a moral das artes cênicas em nosso país à força de “Carmem com Filtro” e “Eletra Com Creta”, lançados em 1986. Porém, com a humildade dos gigantes, Gerald via em Solondz um norte. Via nele a estrada dos tijolos amarelos para um País de Oz similar àquele em que os movimentos cinemanovistas – da Nouvelle Vague de Truffaut, Agnès Varda e Godard, até a Nova Hollywood, de Scorsese – deram à arte. A estrada da inquietude. Uma inquietação nietzschiana, conjugada ao aforismo do bigodudo germânico segundo o qual: “Temos a arte para não morrer de verdades”. Talvez por isso, “Traidor” seja um ensaio sobre a mentira.
Numa cenografia distópica de Fernando Passetti, reativa a uma concepção visual do próprio Gerald (qual um Grito de Munch), o espetáculo mais nutritivo da atual temporada dos palcos nacionais, vitaminado a ironia (e a Nanini), discute qual é o sentido de “traição” nos tempos de fake news. Nos tempos de delações premiadas. São tempos em que todo o saber depende de tutoriais de YouTube. São tempos de “chucrute no bumbum” (como de diz na peça), ou seja, de alívios passageiros, sem êxtase, sem a epifania da transcendência. Não por acaso, numa Tebas de Édipos sem olhos, de Jocastas sem filhos, o texto gargarejado por um ator sem papéis, mas na plena consciência de si, evoca a KGB, a Guerra Fria. Evoca perigos reais e imediatos que, um dia, foram concretos, presenciais, ditongos, tritongos e pronominais. O perigo de hoje deixou de ser sinestésico (não tem volume, nem largura, nem altura) e passou a ser virtual.
“Traidor” assume como personagem um ator chamado Nanini que, um dia, em 2005, fez uma peça seminal chamada “O Circo de Rins e Fígados” (talvez um dos últimos monumentos da nossa dramaturgia), sobre a busca a um homem chamado João Paradeiro. Cerca de 18 anos após aquela experiência libertadora, sobraram àquele rapsodo apenas dúvidas e a percepção de que o Mal, no século (o atual), seja o coletivo das redes sociais que nos cancela e destila ódio em teclas (ou touch screen). Ela fala da Amazon e inventa(-lhe) corruptelas geográficas, como a Pernambook e a Maranhon. São especulações catastrofistas. Cita-se Nietzsche – o Frederico de “O Nascimento da Tragédia” – para justificar o alarmismo de Nanini. Nietzsche deu a dica ao dizer: “O idealista é incorrigível: se é expulso do seu céu, faz um ideal do seu inferno”. Logo, o Nanini da peça é um ativista platônico, um Fedro que come linguiças no banquete com as ideias… ideias sem congruência, sem vértice. Não por acaso, ele admite: “Sou viciado em drogas. Sou viciado em chorar. Sou viciado em perder. Sofro de Brasil”.

Se o Brasil sofrido por “O Circo de Rins e Fígados” era tropicalista, com Nanini a brincar de Zé Trindade, o Brasil de “Traidor” é “Terra em Transe”. No maior filme já feito neste país, premiado com a Láurea da Crítica de Cannes em 1967, Jardel Filho se estatelava ao dizer: “Mas o que vai ser dos jornalistas? O que vai ser dos intelectuais? O que vai ser de mim?”. O Nanini esmerilhado por Gerald se sganzerla, qual um Bandido da Luz Vermelha, cobrando a inexistência de aristas de estetoscópio, e diz: “Apesar do tempo parecer do contra, chega de traidores”. Aquela basta, um tanto saturado, é o berro de um Gerald cansado da mesmice, mas, nunca, nunquinha, de guerra. Sua força como dramaturgo e encenador é inesgotável, como se percebe numa peça que se finge de analgésico (pelas gargalhadas que arranca), mas, revela-se uma vacina contra as alienações nossas de cada dia, contra um pathos sem ethos, para evitar a fadiga. Gerald evoca um deus, Carlos Drummond de Andrade, o itabirano que dizia: “Meu nome é tumulto e escreve-se na pedra”. Com “Traidor”, Gerald tumultua a inércia criativa desta pátria e se escreve, uma vez mais, na rocha glauberiana da excelência.