Cinema

‘Divino amor’ desafia o fundamentalismo

Por Laboratório Pop


Rodrigo Fonseca
Quatro anos se passaram desde o fenomenal “Boi Neon” (2015) e o conservadorismo nacional, por ele combatido, só fez piorar, até nas alas “liberais”, o que torna simbólico (e necessário) o regresso do diretor pernambucano Gabriel Mascaro ao circuito, agora com “Divino amor”, que chega às telas em 27 de junho, depois de uma barulhenta (no melhor sentido) travessia pelos festivais de cinema independente dos EUA e do Velho Mundo. Nele, temos um mergulho, com o oxigênio do distanciamento crítico, no exercício fundamentalista da fé. Mascaro nos dá agora uma alegoria do cristianismo fundamentalista como exercício de alienação e intolerância num tempo em que a fé deveria cumprir sua vocação transcendente de libertação. Uma alegoria com Dia Paes no papel de Joana, crente fervorosa em um projeto de fidelidade conjugal à qualquer prova. Estruturado em coprodução com o Uruguai, o Chile, a Dinamarca e a Noruega, o filme de Mascaro estreou mundialmente em Sundance e, de lá, foi à Berlinale.
“O que me encanta nesse filme é a inteligência com que o Mascaro desenvolve um roteiro tão original, tão atual e que se comunica diretamente com o mundo, a partir de um futuro próximo que faz com que a gente reflita a relação entre religião, política e sociedade”, disse Dira ao LabPop em Berlim.

Seu desempenho arrebatou Sundance: a vitrine mundial para o cinema independente autoral, criada por Robert Redford nos anos 1980, rendeu-se a ela, entre aplausos apaixonados e uma penca de resenhas analíticas sobre o quanto as peripécias de uma escrivã de cartório, fiel aos desígnios do Altíssimo, servem como metáfora para a Era Bolsonaro. “A primeira palavra que vem à cabeça quando se pensa sobre o cinema tematicamente complexo, embora sempre acessível, de Gabriel Mascaro é ‘sensual’. Fotografado e produzido de modo deslumbrante, com atuações impressionantes e uma série de outros aspectos fascinantes, este filme é a prova do que este diretor de 35 anos é um dos mais audaciosos e talentosos diretores de sua geração”, cravou Boyd van Hoeij, em sua resenha para a revista “The Hollywood Reporter”, postada na segunda, após a projeção do filme em Park City, a sede do Sundance.

Karen Han, crítica do site “Polygon”, saiu do filme igualmente embatucada. “Cansada das mesmas distopias? ‘Divino amor’ tem a cura. O Brasil de 2027 parece um sonho. Tudo é conduzido magnificamente por Dira, conforme o material em que ela trabalha vai se refinando. Ela brilha por todo o filme, em especial quando Joana sente não estar sendo recompensada por sua devoção”, escreve Karen, ainda sob impacto da sinestesia provocada pela fotografia do mexicano Diego García.

No Festival de Berlim, o espanto e o encanto foram os mesmos. De modo geral, os críticos se surpreendem com o conservadorismo institucionalizado que a trama denuncia, num contexto marcado por veto do governo ao aborto e por nariz torcido ao homossexualismo. São elementos perceptíveis, mas nunca explicitados no circo místico criado por Mascaro como sinal de alerta ao ovo da serpente que está sendo chocado silenciosamente diante de nós. Para falar dele, seu enredo se passa em um amanhã bem pertinho. Nele, Joana (Dira) usa sua posição no trabalho para tentar salvar casais que chegam para se divorciar. Mas ela se encontra diante de uma crise no próprio casamento, o que termina por deixá-la ainda mais perto de Deus. Os atores Emílio de Melo, Julio Machado, Thalita Carauta, Mariana Nunes, Teca Pereira e Tuna Dwek ajudam Mascaro e Dira a construir o calvário de Joana.

“A personagem de Dira é extremamente complexa e cheio de dilemas. Ela usa a fé como motor de todas as suas ações e a Dira foi fundo na construção dela trazendo ainda mais camadas para sua Joana. Uma atriz com a potência dela sempre aprofunda uma personagem”, diz o roteirista do filme Lucas Paraízo, hoje um dos mais respeitados scriptmen do cinema brasileiro (e da TV), que escreveu o filme com Mascaro, Rachel Ellis e Esdras Bezerra.

p.s.: Outro filmaço brasileiro que fez barulho no exterior vai chegar ao circuito em junho: o doído “Deslembro”, de Flavia Castro, laureado com o Prêmio da Crítica (dado pela Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica, a Fipresci) no Festival do Rio 2018. Suas atuações comovem. Apresentada ao cinema pelo saudoso Domingos Oliveira, a atriz Sara Antunes vai às raias da angústia no papel de uma militante política brasileira, radicada em Paris, que resolve voltar ao Brasil, no início dos anos 1980, de carona na Abertura. Mas sua filha adolescente quer saber melhor o que vai encontrar lá e o que fez sua mãe sair. Heloisa Passos assina a belíssima fotografia deste drama sobre veias abertas da América Latina.