Rodrigo Fonseca
Capa da “Cahiers du Cinéma” no início do ano, quando foi esnobado injustamente pela festa da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, “A Mula” (“The mule”), um dos melhores lançamentos de 2019, enfim chega à grade do Now, disponível ao alcance de um zapear de controle. A produção pilotada pelo mítico Clint Eastwood custou US$ 50 milhões e faturou US$ 172 milhões nas bilheterias internacionais, confirmando a popularidade de seu quase nonagenário astro e realizador.
Imperdoáveis sejam os pudores morais que andam escanteando a importância estética ímpar de Eastwood por conta de suas posições políticas pessoais conservadoras. Em decorrência de patrulhas ideológicas, “A mula”, um filme memorável, à altura de obras-primas como “Cartas de Iwo Jima” (2006) ou “As pontes de Madison” (1995), foi subestimado nos EUA e ignorado para o Oscar. E, nele, em meio a uma vertiginosa mistura de emoções, com foco na tensão, vemos a atuação mais comovente da (longeva) carreira do astro, hoje com 89 anos. Mas o troco foi dado: fora da América, esta trama – baseada na reportagem “The Sinaloa Cartel’s 90-year old drug mule”, feita para o “The New York Times”, por Sam Dolnick – coleciona elogios e deu a Eastwood a capa da prestigiosa revista “Cahiers du Cinéma”. Nela, a crítica Florence Maillard trava paralelo entre Earl Stone – o papel de Clint, um agricultor falido que se transforma em “vaporzinho” para traficantes mexicanos – e o cinema de Raoul Walsh (1887-1980). A analogia se dá a partir do faroeste épico “O intrépido general Custer” (1941), com Errol Flynn. Como diretor, Walsh desfilou por variados gêneros, como Eastwood, mas impregnava os filões mais populares, como esta citada aventura no Oeste, com um toque de amargura, uma percepção do desespero nosso em relação a impotências e deslizes.

Esse é o tema de “The Mule”. Stone é um fanfarrão (a interpretação dele tira Clint do arquétipo de durão, esbanjando molejo e fragilidade). No ocaso da vida, ao chegar aos 90 anos, ele percebe o quanto perdeu tempo na relação com aqueles que o amavam. Um convite para entregar drogas, ganhando o que sua horta jamais renderia, parece a chance ideal de compensar com dinheiro aquilo que não ofereceu de afeto. Mas existe o amor e existe a vida, sua inimiga: querer nem sempre é poder. E como “Os Imperdoáveis” – que deu a Eastwood o Oscar de direção em 1993, já deixava evidente: há um limite para o erro e o perdão. Limite que, aqui, o octogenário cineasta desenha desafiando códigos da correção política e arrancando atuações memoráveis de Dianne Wiest (a ex-mulher de Stone) e de Andy Garcia, um chefão memorável. A fotografia de Yves Bélanger (“A chegada”) é chapada em tons ocres, cinzentos, para traduzir o quão grisalha é a ética do mundo cão que produziu Stone. Trabalho memorável.