Rodrigo Fonseca
Afável com as estéticas lusitanas há décadas, o Festival de Locarno, em sua edição n. 76, tem tratado com mimos e aplauso um concorrente meio suíço, meio português, rodado em Lisboa, mas com foco na ancestralidade cabo-verdiana: o drama “Manga d’Terra, que apresentou ao evento uma estrela com futuro luminoso por vir. Eliana Rosa é seu nome. Santo Antão é a ilha de Cabo Verde de onde ela vem. O cinema a acolheu, mas o microfone parece ser o seu meio de expressão de arranque. Cantando, num timbre de abalar a barreira do som, ela fez do longa-metragem de Basil da Cunha um acontecimento na disputa do Leopardo de Ouro de 2023. Ela canta como as divas da lusofonia (citra Cesária Évora algumas vezes, não por acaso), mas atua de modo comovente também. Numa trama com eixos na vida dos imigrantes e nos abusos que uma estrela em ascensão passa, Eliana garantiu a Locarno um par de shows (um, nas telas; outro, no palco, cantando a trilha sonora do filme) que estarão imortalizados no imaginário cinéfilo e nos tímpanos do povo helvético.
“Muito da Rosa, minha personagem, é meu”, diz a cantora e atriz, destacando a luta de sua personagem contra produtores cheios de segundas intenções. “Se for chegar aonde eu quero ir, será com a minha voz, com meu talento”.
Destaque do Festival de Cannes de 2013 com “Até Ver a Luz”, Basil é um realizador luso-suíço de exuberante apuro visual que se destaca na filmografia de seu(s) país(es) ao dar espaço para populações negras atuarem em papéis que fogem de convenções sociológicas de exploração da miséria e do racismo. “Costumamos brincar que ele é o branco mais preto que a gente conhece em Lisboa”, diz Eliana. “Não consideramos o que ele faz em seu cinema uma apropriação das histórias negras. Ele não gera diferenças conosco”.
Em “Manga d’Terra”, Rosa (Eliana) vive em Lisboa buscando recursos para sustentar os filhos que deixou em Cabo Verde. Mas a atitude opressiva dos produtores musicais e o cerceamento violento da polícia a quem vive em diáspora, imigrando, pioram o dia a dia dela. Algumas das canções que Rosa entoa são de Eliana.
“Estou preparando um EP com algumas músicas minhas agora”, diz ela, que além de brilhar nos vocais, também se destaca como compositora. “Tentei aprender guitarra, mas não consegui. Toco palmas. Isso eu toco bem. Acho que escrevo mal, muito mal. Mas as pessoas me dizem que não. O filme acabou trazendo um repertório meu”.
Locarno segue até o dia 12 de agosto, quando o júri presidido pelo ator francês Lambert Wilson anuncia os vencedores. Fora da competição oficial, o longa “El Rezador”, de Tito Jara, egresso do Equador, impõe-se como um dos achados da programação organizada sob curadoria feita por Giona A. Nazzaro, o diretor artístico do festival. Na trama, um charlatão que se faz passar por pastor descobre uma menina milagreira e tenta lucrar com isso.
Neste sábado o festival conferir o esplendoroso curta-metragem carioca “Pássaro Memória”, de Leonardo Martinelli. Nele, uma jovem (Ayla Gabriela) se embrenha pelo Rio de Janeiro em busca de uma ave de estimação que se perdeu. Em 2021, Martinelli saiu daqui com o troféu de melhor filme da mostra Pardo di Domani e pode repetir a dose.