Rodrigo Fonseca
Um dia depois de ser eleito “O” filme de 2024 na enquete de Melhores do Ano da Associação de Crítica do Rio de Janeiro (ACCRJ), “Ainda Estou Aqui” passa (com louvor) por sua primeira prova antes do Oscar, em solo americano, ao garantir à sua protagonista, a carioca Fernanda Torres, o Globo de Ouro de Melhor Atriz de Drama. O troféu foi entregue a ela por Viola Davis, a homenageada de 2025 no evento anual de correspondentes da imprensa estrangeira de Hollywood, realizador no domingo, no Beverly Hilton Hotel, na Califórnia. A comediante Nikki Glaser comandou a festa, que elegeu como Melhor Filme “O Brutalista”, de Brady Cobert (na seara dramática) e “Emilia Pérez”, de Jacques Audiard, no front de comédias e musicais. A saga da mulher trans que um dia foi um chefão do tráfico no México, filmada caudalosamente por Audiard, arrebatou ainda a estátua para longas de língua não inglesa. A produção estrelada por Torres concorria nesse quesito também, ampliando o prestígio de seu diretor, Walter Salles.
Ao ser anunciada por Viola, a filha de Fernanda Montenegro cravou:
“Meu Deus, eu não preparei nada, porque eu não sei se eu estava pronta. Foi um ano incrível para os desempenhos de atrizes. Tantas atrizes aqui que eu admiro tanto. E, claro, eu quero agradecer ao Walter Salles, meu parceiro, meu amigo. Que história, Walter! E, é claro, eu quero dedicar esse prêmio à minha mãe. Vocês não têm ideia: ela estava aqui há 25 anos”, afirmou Torres ao evocar o legado de Fernanda Montenegro, com quem divide o papel da advogada e ativista Eunice Paiva (1932-2018).
Seu desempenho ajudou o longa a vender 3 milhões de ingressos da estreia (em novembro) ao réveillon. Seu enredo brota do romance homônimo de Marcelo Rubens Paiva, o autor de “Feliz Ano Velho” (1982). Durante os Anos de Chumbo, no começo da década de 1970, Eunice (mãe de Marcelo) teve seu marido, o engenheiro Rubens (papel de um coruscante Selton Mello), levado para depor, mas ele nunca regressou. Dali para diante, ela se empenha em dissipar névoas da tortura e das práticas de sumiço de ditos “subversivos”, numa trajetória heroica. A montagem espartana de Affonso Gonçalves narra essa luta em saltos no tempo, com direito a uma entrada de F. Montenegro numa sequência de doer na alma. Maria Carlota Bruno (“No Intenso Agora”) e Rodrigo Teixeira (“A Vida Invisível”) assinam os créditos de produtor desse fenômeno de audiência sul-americano.
Fenômenos semelhantes também saíram premiados no domingo. Depois de passar pelo Natal e pelo Réveillon lotando salas, com um faturamento de US$ 681 milhões, “Wicked”, baseado no fenômeno homônimo da Broadway ganhou o Globo de Melhor Blockbuster, categoria que nasceu em 2024, a fim de reverenciar títulos que reataram a relação das plateias com as salas de projeção.
Um dos pontos mais tocantes deste Globo de Ouro foi o discurso de Demi Moore ao sair vitoriosa da competição de Melhor Atriz de Cômica por um… filme de terror – e que filme! Hoje no ar na MUBI, “A Substância” revitalizou sua fama, outrora em alta, sobretudo nos tempos de “Ghost – Do Outro Lado Da Vida” (1990). Demi se recicla ao viver uma estrela decadente que se submete a um experimento com uma fórmula química a fim de reaver sua juventude.
“Achava que já havia feito tudo o que tinha para fazer quando me chegou esse roteiro fora da caixinha”, disse Demi, cujo cacife muda de patamar depois de sua aclamação com o body horror de Coralie Fargeat.
Outrora, acreditava-se que quem ganhava o Globo de Ouro seria oscarizado automaticamente, mas a História questionou esse postulado. Votações dos sindicatos de Hollywood, sobretudo o Screen Actors Guild (SAG) e o Producers Guild of America (PGA), têm mais peso, pois refletem o gosto de quem (de fato) vota na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos EUA, que anuncia seus concorrentes no próximo dia 17. Apesar disso, o Globo, concedido desde 1944 por correspondentes da imprensa estrangeira em solo hollywoodiano, continua a ser encarado como chancela de prestígio, por alargar a visibilidade de títulos em circuito comercial, elevando sua receita numa temporada de premiações que termina no dia 2 de março, com a festança da Academia. Até lá, muitos longas-metragens vão mobilizar o circuito, cercados de potenciais favoritismos. A conquista do Globo dourado vai ajudar muitos, ao arrebatar holofotes para as/os vitoriosas/os, como é o caso de Sebastian Stan, o Soldado Invernal de “Os Vingadores”, que arrebatou o Globo de Melhor Ator Cômico no papel de aspirante a ator que se transforma facialmente.
A consagração dele flerta com a dimensão inclusiva do evento americano, que reforça o árduo esforço de sua organização para espantar demônios que assombraram o troféu quando este era oferecido pela Hollywood Foreign Press Association (HFPA), inaugurada em 1943. A primeira cerimônia em que a láurea foi concedida ocorreu há 81 anos, no estúdio 20th Century Fox, de olho nos magnatas da indústria. Seu primeiro vencedor foi “A Canção de Bernardette”, que venceu nas disputas de Melhor Filme, Direção (Henry King) e Atriz (Jennifer Jones). O troféu, caracterizado por uma reprodução da esfera terrestre rodeada por uma película de filme cinematográfico, teve vários designers ao longo das últimas oito décadas. A versão distribuída atualmente pesa cerca de 3,5 quilos. É feita de latão, zinco e bronze, e mede 11,5 polegadas, acoplando-se a uma base retangular, vertical, de notável elegância. De 1950 até 2022, guerras internas – de egos e de condutas profissionais questionadas em parâmetros éticos – quase levou a festa de entrega dessa estatueta à extinção, sob a acusação de abusos de poder, falta de representatividade (das populações negras, asiáticas, indígenas) e sexismo. A ameaça de cancelamento reinou sob as cabeças da HFPA até uma revitalização, em 2023, o que deu ao contingente de profissionais de mídia envolvidos em sua realização (334 jornalistas, de 85 países) a chance de recomeçar, alinhada com os pleitos urgentes da contemporaneidade.
Ao escolher os ganhadores dos Globos de TV ou streaming, a massa votante elegeu “Xógum: A Gloriosa Saga do Japão” e “Hacks” como seus queridinhos.
VITÓRIAS
DRAMA
Melhor Filme: “O Brutalista”
Melhor Atriz: Fernanda Torres (“Ainda Estou Aqui”)
Melhor Ator: Adrien Brody (“O Brutalista”)
COMÉDIA/ MUSICAL
Melhor Filme: “Emilia Pérez”
Melhor Atriz: Demi Moore (“A Substância”)
Melhor Ator: Sebastian Stan (“Um Homem Diferente”)
Conquista Cinematográfica e Bilheteria: “Wicked”
Série de Drama: “Xógum: A Gloriosa Saga do Japão”
Série de Comédia: “Hacks”
Direção de longa-metragem: Brady Corbet (“O Brutalista”)
Atriz Coadjuvante: Zoe Saldaña (“Emilia Pérez”)
Ator Coadjuvante: Kieran Culkin (“A Verdadeira Dor”)
Roteiro: Peter Straughan (“Conclave”)
Animação: “Flow”, de Gints Zilbalodis
Filme de Língua Não Inglesa: “Emilia Pérez”
Trilha sonora: Trent Reznor e Atticus Ross (“Rivais”)
Canção Original: “El Mal” (“Emilia Pérez”)