Rodrigo Fonseca
Ao cair nas bênçãos da “Cahiers du Cinéma”, revista francesa encarada como Bíblia audiovisual, “Aramadilha” (“Trap”), de M. Night Shyamalan, fecha 2024 nas listas de importantes enquetes cinéfilas sobre o que se viu de melhor em 2024, nas telas, e assegura um novo séquito de fãs para si no terreno do streaming, na grade da MAX. No roteiro mais doido (leia-se “livre”) de sua trajetória de (bons) scripts repletos de viradas, o diretor de “O Sexto Sentido” (1999) aplica todas as fórmulas de tensão que aprendeu vendo Hitchcock e potencializa cada uma, com sua aeróbica de enquadramentos inquieta, para narrar o cerco a um psicopata (Josh Hartnett) que, pra manter a fachada de cordeiro, leva a filha ao show de uma estrela pop. A claustrofobia dá o tom da narrativa, construída a partir das aeróbicas de câmera habituais do cineasta indiano radicado na Filadélfia.
Precedido por uma campanha midiática que marcou a passagem do realizador por São Paulo, “Armadilha” gerou uma busca por seus trabalhos recentes, em especial o controverso “Batem à Porta” (“Knock at the Cabin”), de 2023, que hoje faz sucesso na Amazon Prime. Sua bilheteria global beirou US$ 54 milhões. Novos holofotes fazem dessa fita um cult. Gramaticalmente, “Batem à Porta” periga ser o exemplo mais bem-sucedido do uso contínuo de closes, super closes e planos de detalhe da História, pelo menos no cinema pop. Calca-se em metonímias, do começo ao fim, de modo a conseguir expressar o horror da intolerância e de seu gêmeo perverso, o fanatismo. É um Shyamalan em estado de graça. O diretor vem se superando a cada filme, embora dê umas derrapadas (sobretudo em escalação de elenco) em “Tempo” (“Old”), de 2021, que fez enorme sucesso de audiência em sua recente passagem pela TV aberta, na grade da “Tela Quente” da Globo – que vai exibir “Matrix Resurrections” na próxima segunda, dia 30. O que Shyamalan faz em “Batem à Porta” é algo da ordem do sublime, no que se remete à estrutura formal de um longa de suspense, que se propõe a ser intimista. Há a taquicardia de sempre, em seu cinema, que alcançou status de autor prestigiado em 2004, após o lançamento do seminal “A Vila”. Existe nele uma perspicácia poética na maneira de tratar da intolerância – assunto sempre caro ao diretor nascido em Pondicherry, na Índia, há 54 anos – e de retratar o quanto famílias podem ser signos transcendentais para a ignorância nas relações afetivas. Sua narrativa não gasta tempo com firulas e já começa febril. Na sequência inicial, uma de suas personagens centrais, a encantadora menininha Wen (Kristen Cui), é abordada por um monstro tipo o de Frankenstein, cuja psiquê é moldada por retalhos de fake news e crenças ardorosas no improvável: o professor e bartender Leonard (Dave Bautista, numa atuação devastadora). É chocante ver o Drax de “Guardiões da Galáxia” naquele personagem – um ser taciturno, de uma sabedoria catastrofista, digna de pregador religioso – que inunda o retângulo da telona com seu corpanzil. Igualmente arrebatador é a atuação de Josh Hartnett em “Armadilha”, no papel do serial killer que banca de bom moço enquanto a polícia caça sua cabeça em um estádio do qual não tem a chance de fugir.
Vale lembrar que Shyamalan presidiu o júri da Berlinale, em 2022, tendo Karim Aïnouz em seu corpo de juradas/os. Dois dos melhores filmes dele, “Sinais” (2002) e “Fim dos Tempos” (2008), estão na Disney +.
p.s.: A foto deste post, das filmagens de “Armadilha”, é uma imagem de divulgação de Sabrina Lantos – © 2023 Warner Bros Entertainment Inc.