Rodrigo Fonseca
Mesmo em seus momentos de maior submissão à simplicidade, em prol de uma dialética que, por vezes, bebe da água da retórica, no paradoxo da luta de classes, Ken Loach sempre passa pela telona com dignidade, como se viu nesta quinta-feira em Cannes, na volta do octogenário diretor britânico, com “Sorry we missed you”. Nem de longe, seu novo trabalho arranha o viço de “Eu, Daniel Blake”, que lhe deu sua segunda Palma de Ouro, em 2016. Antes, em 2006, ele conquistou a primeira com “Ventos da liberdade”. Seu regresso, aos 82 anos, carece de tons mais carismáticos no time de personagens que escolheu para dissecar: uma família de baixa classe média de Newcastle, assombrada pela falta de tempo e pela escassez de dinheiro. Há ainda um mau comportamento escolar no filho mais velho que preocupa o casal central: Abby (Debbie Honeywood) e Ricky (Kris Hitchen, despontando nas apostas locais para o prêmio de melhor ator). Ela é uma cuidadora de idosos, mãe de dois adolescentes, sendo uma menina de boa índole e o tal rebelde supracitado. Seu marido, que raras vezes ri, abre um negócio próprio micro de entrega de encomendas via van. A compra do tal veículo deflagra uma série de crises na relação, no lar, na paz que outrora havia em suas dificuldades. Há uma causa social nobre. Mas falta a energia de filmes como “Meu nome é Joe” (1998).


Amanhã, ele conversará com a imprensa. Mas há ideias no novo longa que já estavam nesse resumo de conversas que fizemos com ele entre 2016 e 2018:
Lab Pop: Seu cinema incorpora fatos reais, emprega não-atores. O que há de documental nele?
Ken Loach: Fiz filmes como “Espírito de 45” que são essencialmente documentais: usam imagens de arquivo e não ficcionalizam nada. Ali, eu tenho um documentário. Fora isso, eu conto histórias, inventadas, com uma reflexão moral na maneira como os personagens encaram suas jornadas. Eu não uso câmera na mão, não invado o espaço do ator para desfocar sua interpretação e valorizar o que está em torno dele, e me baseio sempre em roteiros. Uso tripé, com câmera fixa, ensaio… Tudo isso quebra uma certa estética documental que ficou em voga nos últimos anos e que tem seu valor. Mas não sigo esse caminho. Eu observo. Minha câmera é testemunha de reflexões que meus atores – mais ou menos experientes na prática de atuar – fazem acerca de problemas universais que eu apresento a eles. E parto de pesquisa na escrita dos scripts, feita pelo meu parceiro Paul Laverty. Ao observar, eu enquadro o Real e o analiso.
Lab Pop: O que o rótulo de “cineasta marxista” representa para o senhor?
Ken Loach: Houve um momento na História do século XX no qual qualquer atitude dialética, que envolve a preocupação com o bem-estar da sociedade, passou a ser encarada como expressão política. Se o rótulo vier dessa ótica, está aceito, embora ele seja redutor. Eu leio Marx há décadas a fio porque o Velho Barbudo sempre tem o que explicar acerca de nossas incongruências. Marx não é religião, é iluminação. Agora, o fato de eu passar por ele para falar sobre pessoas – que é o que meus filmes buscam fazer – faz da minha obra “cinema político”. Há uma linhagem de filmes que assumem melhor essa classificação, como eram os longas de Elio Petri, de Costa-Gavras, do seu Glauber Rocha e muitos documentários. Eu conto histórias sobre pessoas em conflitos pessoais diante de dilemas práticos. E, muitos desses dilemas, é o Estado que cria. Enquanto o Estado não parar de culpar os pobres por seu infortúnio, eu não pararei de filmar, enquanto tiver forças
Lab Pop: O senhor é um dos poucos diretores a ter duas Palmas de Ouro no currículo. A segunda, conquistada por Eu, Daniel Blake, em 2016, veio às vésperas do seu aniversário de 80 anos, ampliando sua popularidade em circuito. Qual é o valor ético desse filme na sua obra?
Ken Loach: Todos os meus filmes partem de um olhar sobre as cidades onde eles se passam, ou sobre países, como é o caso da Espanha franquista em Terra e Liberdade. A cidade é um coprotagonista, pois ela interage todo o tempo com os personagens, modificando como eles agem. Eu, Daniel Blake tem muitas universalizações, mas tem também um foco geográfico bem específico: Newcastle, uma cidadezinha a 450 Km ao norte de Londres, com uma tradição de lutas sindicais. É um lugar mais pobre do meu país, que eu adotei como cenário a fim de gerar uma reflexão sobre o quanto é desordenada a assistência aos desempregados. A Inglaterra é um país do desemprego e de muitas outras contradições. Muitas delas vieram à tona com o plebiscito acerca da nossa saída da União Europeia e o Brexit. Nesse filme, tive a sorte de partir do conflito do desemprego para falar sobre amizade e para denunciar o peso da burocracia nos centros de assistencialismo.

Antes de “Sorry we missed you”, Cannes testemunhou a consagração do ator e cineasta Dexter Fletcher como autor durante a comovente homenagem a sir Elton John com “Rocketman”. O mesmo dispositivo de façanhas de “Bohemian Rhapsody”, que Fletcher ajudou a delinear em nome da Fox, aplica-se aqui na biopic do cantor, pianista e colecionador de óculos dos mais variados: a diferença é que o realismo quase documental usado no longa sobre o Queen aqui dá lugar a um lirismo que flerta com o delírio. Taron Edgerton encarna Elton com maturidade e retidão. Mas a estrela maior é a fotografia de George Richmond, que satura a luz no tom certo para traduzir o lado somvrio dos excessos de Elton. Presente na projeção, ele chorava baldes.
Dirigido pelo ator e documentarista francês Ladj Ly, cuja família vem do Mali, “Les Misérables”, uma releitura dos motes sociais do romance homônimo de Victor Hugo, transportado para os subúrbios da Paris dos dias de hoje, é o melhor (e mais festejado) filme da briga pela Palma de Ouro em 2019, disparadamente. Na trama, um trio de policiais liderados pelo abusivo Chris (Alexis Maneti) gera uma onda de brutalidade entre jovens de um bairro majoritariamente negro, povoado por muçulmanos e ciganos, ao agredir um garoto que, numa brincadeira, roubou um filhote de leão de um circo. Um drone é testemunha dos atos agressivos de Chris e traduz a visão de Ladj em buscar uma visão fluída, com múltiplos pontos de vista, dos desajustes urbanos da França pobre. Depois dele, vem o brasileiro “Bacurau”, cujo roteiro esbanja criatividade, potencializada pela maldade de Udo Kier no papel do líder de uma falange de assassinos.
Nesta sexta-feira, Cannes confere o filme que, por honra ao mérito de seu realizador, Pedro Almodóvar, chegou da Espanha à França com status de queridinho da mítica revista “Cahiers du Cinema”: “Dolor y Gloria”. Lançado em março em seu país de berço, o novo melodrama do diretor de “Tudo sobre minha mãe” (1999) pode dar a ele a Palma dourada que alimenta seus sonhos há quatro décadas. Antonio Banderas é um cineasta com problemas de saúde e com vício que revê seu passado, numa retrospectiva de sua obra, revisitando as lições que recebeu de sua mãe, papel de Penélope Cruz. “É uma trama tão autobiográfica como as outras. Por isso não autorizo que façam minha biografia: ela está nos meus filmes”, disse o diretor ao lançar o longa em solo espanhol. Há quem aposta em prêmio de melhor ator para Banderas.