Lav Diaz: ‘Filme não é negócio, é ritual’
Famoso por filmes longuíssimos, de até oito horas de pura poesia, o filipino abre um diálogo com o filão musical, num experimento P&B sobre a luta contra a intolerância
Rodrigo Fonseca
Só deu Tarantino nas notícias de Cannes desta terça-feira, e por honra ao mérito, dada a força poética da reinvenção histórica de “Era uma vez em Hollywood” (“Once upon a time… in Hollywood”), com uma Margot Robbie etérea, um Leonardo DiCaprio com a dádiva da autorredescoberta e um Brad Pitt brincante. Mas quarta tem Lav Diaz, com filme novo na Quinzenas dos Realizadores: o filipino costuma ser um ímã de críticos. É dia de seu inédito “The Halt” (“Ang Hupa”). Sua ambientação é sci-fi: em 2034, o Sol se pôs e nunca mais voltou, num cataclisma causado por erupções inusitadas e poluições, o que erigiu uma nova casta de déspotas e uma nova linhagem de servos.
Pela Quinzena, este ano, já passaram três atrações memoráveis: o drama peruano “Canción sin nombre”, no qual Melina León relembra o sumiço de bebês nos anos 1980; “The Lighthouse”, de Robert Eggers, com Robert Pattinson e Willem Dafoe acossados pelos mistérios de um farol; e “First love”, de Takashi Miike, no qual um pugilista ajuda uma jovem acossada por delírios persecutórios num embate contra uma guerra de gangues. Mas Lav chega com um cacife de autor classe AA, o que dá justificativa para as 4h36 do longa-metragem que a Croisette verá enquanto cura a ressaca pela triste beleza do 1969 de Tarantino, com Al Pacino de coadjuvante de luxo.
Paciência é o bem mais precioso e abundante dele, Lav(rente Indico) Diaz, cineasta de 60 anos que, festival a festival, seja Cannes, Berlim ou Veneza (onde ganhou o Leão de Ouro em 2016, por “A mulher que se foi”), vem colocando as mazelas das Filipinas, sua terra natal, no centro das discussões do planisfério cinéfilo. E o faz de uma forma que desafia todos os cânones mercadológicos do cinema, mesmo o de linha independente: seus longas-metragens, de fortes tintas teatrais na encenação e na suspensão do viés naturalista, são… longos… looooooongos mesmo. A média: quatro horas, sendo que “Canção para um Doloroso Mistério”, pelo qual conquistou o Troféu Alfred Bauer de Inovação de Linguagem na Berlinale 2016, tem oito horas e cinco minutos do que uns chamam de radicalismo e outros, de pura poesia. Um curta-metragem dele, “Prólogo para o grande desaparecido” (2013), tem… 31 minutos! Guerra civil, ditadura militar, feminicídio, machismo e outras modalidades de intolerância são alvos de crítica em produções como “Estação do Diabo”, musical de três horas e 54 minutos, que lançou recentemente no Brasil.
“É muito incômodo perceber que as pessoas entendem a palavra ‘cinema’ como algo associado a uma manifestação de duas horas de duração ou de uma hora e meia de reviravoltas formatadas pelo mercado sob uma lógica contínua de causa e efeito, na qual as sensações se amontoam para conduzir o espectador a uma certeza. As pessoas vão ao cinema para descobrir quem matou quem, quem roubou quem, quem tem a chave para o enigma. Eu venho de um país cheio de conflitos. Conflitos que já levaram muitas pessoas à morte. Você realmente acredita que existam ‘respostas’, ‘verdades’ na arte que vem de uma realidade como a das Filipinas? E mais… você acha que isso é um problema só da minha nação?”, questiona Lav Diaz, num papo com o LabPop no Festival de Berlim, em fevereiro, ao lançar “Season of the Devil” mundialmente. “O preto & branco entra na minha arte como um efeito de linguagem: o cinema precisa suspender a realidade para exumá-la. E a direção é distendida para que cada sequência, ou melhor, cada plano possa ser apreciado em todos os seus detalhes, desde o movimento dos atores até a lei física por trás do vento nas folhas. Eu não corro pois não faço produtos. Faço propostas de transcendência, o que depende da troca livre com o espectador. Cinema não é negócio, é ritual”.
Estruturado a partir de planos estáticos de poucos elementos em cena, o cinema dele dispensa instrumentos musicais (cordas, sopros, percussões), apostando em cânticos (ladainhas mesmo) sobre o processo da violência militar na Ásia dos anos 1970. O que importa na obra dele é a experiência quase metafísica de viajar no tempo a partir de uma gira quase religiosa. O diretor responsável por essa cerimônia estética (insuportável para muitos que abandonam a sala de projeção com 20 minutos filme; reveladoras para os que resistem até o fim) é um prolífico artesão autoral na ativa desde 1991: escreve, edita, compõe trilha, fotografa, produz e dirige. Chega a fazer dois longas a cada dois anos, atraindo investidores da Ásia e da Europa, que bancam o custo estimado em R$ 500 mil de cada longa dele.
“Se você vem de um contexto de repressão, a arte só faz sentido como sendo algo que liberte, não apenas das neuroses violentas do mundo como das neuroses do mercado”, diz Lav, sempre com um sorriso de orelha a orelha, que só se desfaz quando lhe perguntam sobre a hipótese de encurtar seus filmes. “Hoje, com o boom das séries de TV, as pessoas assistem a maratonas de dez episódios de ‘Game of Thrones’ ou de ‘House of cards’ sem reclamar, como se fosse um hábito de consumo normal. Por que então a experiência de gastar quatro horas na sala de cinema, contemplando imagens que fogem das convenções, incomoda tanto? Será que toda experiência audiovisual é obrigada a se pasteurizar num formato de série americana, tendo no diálogo sua força estética principal. E por que as próprias salas exibidoras precisam estar formatadas a um tipo de estrutura narrativa, a hollywoodiana, em vez de assumir sua real vocação: ser um templo. Um templo onde a fé no mistério da arte pode levar ao improvável, ao inesperado. O inesperado pode não se contentar com duas horas”.
No cinema de Diaz, a mulher é sempre um signo de força, de resistência. Em Berlim, o longa foi chamado pela crítica alemã de “experiência embriagadora”. É a expressão que ele mais coleciona desde que chamou a atenção da imprensa internacional e dos curadores com “Norte, o Fim da História” (2013), de 250 minutos imunes a bocejos e cansaços. “Meus filmes são reflexos de feridas históricas da colonização espanhola, num jugo imperialista que deixou traumas”, diz Lav. “A única forma de eu encarar esses fantasmas é pela imersão. É a partir dela que eu encontro a trilha de universalidade capaz de abrir dores típicas de um filipino para pessoas de outros cantos do mundo. Assim como Hollywood, eu também tenho meus super-heróis, só que eles não são seres voadores ou mascarados que combatem o crime na violência. Meus herói é Tolstói. Meus heróis são os cineastas que me ensinaram a traduzir poeticamente o Tempo, como o húngaro Béla Tarr e o russo Andrei Tarkóvsky. Eles renovam minha fé no mundo. Não existe cinema lento: existe cinema, ponto. A lentidão é da vida.”
Entre a Hollywood de Tarantino e a Coreia de Bong Jong Ho, que trouxe para a competição cannoise o hilário “Parasite”, sobre um clã de picaretas, Cannes visitou Sintra, em Portugal, na cola da mítica atriz francesa Isabelle Huppert em “Frankie”, finíssimo ensaio sobre a vida burguesa do americano Ira Sachs (“O amor é estranho”), com roteiro do brasileiro Maurício Zacharias. Huppert é uma atriz que reúne a família numa bucólica região portuguesa a fim de uma despedida. Mas há roupa suja a ser lavada entre seus parentes e amigos, a começar pela cabelereira vivida por Marisa Tomei. A delicada construção de luz do filme é arquitetada por Rui Poças, fotógrafo de cults como “Zama” (2017).
Cannes chega ao fim neste sábado, com a entrega de prêmios da seleção oficial e a projeção da comédia motivacional “Hors norme”, de Éric Toledano e Olivier Nakache, mesma dupla do fenômeno “Intocáveis” (2011). Nesta sexta serão entregues os troféus da seção Un Certain Regard, que tem “A vida invisível de Eurídice Gusmão”, rodado no Rio por Karim Aïnouz, como seu principal concorrentes, tendo sido elogiado nas mais diversas línguas. Estima-se que a atriz Fernanda Montenegro, um dos destaques do elenco de Karim, possa sair premiada na Croisette, 21 anos depois da consagração mundial de “Central do Brasil”.