RODRIGO FONSECA
Agendado para estrear no Brasil no próximo dia 16, “Misericórdia” (“Miséricorde”), de Alain Giraudie, ganhou um cacife internacional acima do que seus distribuidores e até exibidores internacionais esperavam, no início de dezembro, ao ser eleito “O Filme do Ano” na enquete dos favoritos da revista “Cahiers du Cinéma”. Fundado em 1951, o periódico é tratado como Bíblia entre cinéfilos e revelou diretores em seu estafe de escribas (Jacques Rivette, Claude Chabrol, Godard). Sempre que um longa-metragem lidera seu ranking anual, seu Top Ten, tal fita ganha status de must-see (aquilo que DEVE ser visto… e logo), ou seja, de obrigatória. Foi o que se passou em 2022 com “Pacifiction, do catalão Albert Serra, e em 2023 com (o road movie de quatro horas) “Trenque Lauquen”, da argentina Laura Citarella, hoje na plataforma de streaming MAX.
O thriller dirigido por Giraudie fez sua estreia mundial em maio, na seção (não competitiva) Première do Festival de Cannes, e passou pela Mostra de São Paulo, em outubro, ao mesmo tempo em que estreou nas salas de projeção de Paris, Nice, Marselha e arredores. Teve uma bilheteria modesta por lá (207 mil pagantes) e não ganhou prêmios em eventos classe AA, embora tenha abocanhado a láurea de melhor roteiro no Festival de Vaiadollid, na Espanha. Mesmo assim, arrebatou a “Cahiers”, que já havia flertado com seu realizador antes, em 2013, ao coroar o maior sucesso dele (até hoje), “O Estranho no Lago”, como seu xodó. Naquele ano, ele veio ao Brasil, participar do Festival do Rio, onde ganhou uma retrospectiva.
Na trama de “Misericórdia”, Jérémie (Félix Kysyk) volta à sua cidade natal para o funeral do seu primeiro patrão, o padeiro do vilarejo. Ao chegar, decide permanecer por mais algum tempo ao lado da viúva, Martine (Catherine Frot). Essa presença, no entanto, acaba perturbando o ambiente ao criar uma desavença com o filho da mulher, Vincent (Jean-Baptiste Durand). Um misterioso desaparecimento, um vizinho ameaçador e o padre local com estranhas intenções fazem a estadia de Jérémie tomar um rumo inesperado… e infernal. “Meu objetivo era filmar uma narrativa outonal, com as folhas caindo, na qual o assobio do vento e a chuva servissem como signos da natureza numa vila que mudou pouco desde os anos 1970, como se estivesse estagnada, na forma, no tempo. Ali se passa uma história de solidões que se trombam, sob a violência do desejo”, disse Giraudie ao LABORATÓRIO POP, em Cannes. “Meu empenho era convidar a plateia a refletir sobre perdão”. Aos 60 anos, Giraudie começou sua carreira em 1990, com o curta “Les Héros Sont Immortels”, e engatou uma trajetória de prestígio no universo queer. “No cinema, como na vida, o inesperado nos tira da inércia”, defende. “Não aceito rótulos para meus filmes, pois abordo o querer de forma plural. Dialogo com cartilhas de gênero, mas não me limito a suas leis”.