Rodrigo Fonseca
Gramado, festival mais popular do audiovisual brasileiro encerra neste sábado sua edição de 2023, com produções populares como “Mussum, O Filmis” na disputa pelo Kikito, ao mesmo tempo em que o longa-metragem de abertura do evento gaúcho, o .doc ensaístico “Retratos Fantasmas”, do pernambucano Kleber Mendonça Filho, assenta-se em circuito. Vai ter sessão dele hoje, às 20h, no Estação NET Botafogo. Já o longa sobre o irreverente trapalhão firma seu nome na Serra Gaúcha.
Rodado a partir do Carnaval de 2022, em locações no Rio, como o Teatro Carlos Gomes, um dos longas-metragens mais esperados pelo audiovisual brasileiro, “Mussum, O Filmis”, de Silvio Guindane, terá sua primeira exibição pública esta noite, no Festival de Gramado, em disputa pelo Kikito de Melhor Filme de 2023. Qualquer pesquisa de imagem que se faça sobre seu personagem central, Antônio Carlos Bernardes Gomes (1941-1994), num Google qualquer da web, já traz, entre as opções mais clicadas, o rosto do ator Aílton Graça. Cabe a ele fazer a recriação dos feitos do sambista mangueirense e eterno Trapalhão numa superprodução que pode virar um fenômeno de bilheteria. Há 20 anos, Guindane consolidou seu prestígio nas telas do evento gaúcho ao protagonizar o premiado “De Passagem”. Lá, estrelava o périplo de um jovem militar em busca de um amigo sumido. Agora, ele regressa como realizador.
Yuri Marçal vive Mussum jovem. Ailton encarna o Mussum do programa “Os Trapalhões”. O projeto foi orçado em cerca de R$ 11 milhões e é produzido pela Camisa Listrada, de André Carreira, responsável por fenômenos como “Tudo Bem No Natal Que Vem” (2020). A gênese é um roteiro de Paulo Cursino.
Sobre o filme de KMF…. Aplaudido no Festival de Cannes, onde integrou a competição pelo troféu L’Oeil d’Or, o .doc “Retratos Selvagens” estreia no dia 24/8. É uma narrativa que gravita por memórias. Vê-se um pôster de “Rambo III” (1988) num dado ponto do início de “Retratos Fantasmas”, em meio a uma ronda de Kleber por antigos palácios de exibição do Recife. Nesse trânsito por sua cidade, ele oferece à plateia recordações do apartamento onde viveu. É a casa que serviu de QG a muitos de seus filmes, inclusive alguns que o levaram a Cannes, onde lançou, em maio, um tratado documental de ocupação simbólica do patrimônio, o tal “Retratos…”, cujo roteiro é de um arrojo dramatúrgico notável.
Feito de papelão, o reclame publicitário da terceira e menos valorizada aventura de Rambo não está no lar do diretor do cultuado “Bacurau (Prêmio do Júri na Croisette em 2019), codirigido por Juliano Dornelles. Essa instalação de papel está num dos acervos que ele visita. Na prática, o que ele faz é provar que, na relação com a cinefilia, toda cidade é um acervo vivo de imagens e, também, um potencial cenário para um “Taxi Driver” particular. Há uma explícita homenagem ao cult de Scorsese na narrativa de Kleber.
“Retratos Fantasmas” e “Mussum, o Filmis” seguem trilhos diferentes, ressaltando o quão plural é nossa filmografia. Uma filmografia que se expande pelo Tempo
Laureado em 2022 com o troféu Leopardo de Ouro no Festival de Locarno por “Regra 34”, de Julia Murat, o cinema brasileiro avança pela década de 20 do século XXI com a maior proliferação inclusiva de mulheres diretoras da História, assim como tem suas vitrines ocupadas por longas-metragens cunhados por populações negras e indígenas num volume que desafia a expressão outrora branca de Zona Sul carioca que lhe dava eixo. No Brasil do Agora, Laís Bodanzky, Sabrina Fidalgo, Maria Augusta Ramos, Cíntia Domit Bittar, Lúcia Murat, Anna Muylaert, Renata Pinheiro, Paula Kim, Thais Fujinaga e a supracitada Julia alcançaram enorme prestígio em solo estrangeiro, ao mesmo tempo em que campeãs de bilheteria se firmaram no terreno mais popular (e populista) da comédia, como Cris D’Amato e Susana Garcia, com destaque para o pop plural de Julia Rezende, bem-sucedida tanto na seara das franquias de blockbusters quanto nos dramas de amor de baixo orçamento.
Depois dos quase 500 mil ingressos vendidos por Lazaro Ramos e seu “Medida Provisória”, em 2022, as causas antirracistas explodiram nas telas da nação, como se viu com o êxito popular de “Marte Um”, de Gabriel Martins. Aplaudido em Sundance e coroado com quatro prêmios em Gramado, entre eles o de Melhor Roteiro, o longa de Martins é um potente exemplar do novíssimo cinema mineiro, feito pela produtora Filmes de Plástico. É a cartografia de uma família que se transforma após a eleição presidencial de 2018, tendo como voz central um menino que sonha com as estrelas.
Mas este cenário um dia foi diferente. Bastante… Ali pelo fim dos anos 2000, antes da streaminguesfera abrir a roda, o cinema brasileiro iniciou uma migração de visibilidade para uma fatia quase sempre escanteada de seu povo: as culturas ind[igenas. Em 2008, o ator Matheus Nachtergaele fez sua estreia na direção rodando “A Festa da Menina Morta” no interior de Barcelos, cidade do Amazonas a 400 km de Manaus. Lá, mesclou atores de expressão global popular com representantes de aldeias povoadas a fim de abrir uma reflexão sobre identidade. Essa reflexão era antes restrita ao solo etnográfico do cinema indigenista, visto só em museus ou em escolas. Mas houve, em 2009, um trânsito desse lugar do indigenismo quando um documentário de tintas políticas, “Corumbiara” – sobre uma gleba ameaçada de sofrer uma atomização por conta da luta fundiária -, ganhou vez e voz em festivais, como o de Gramado, antes avesso a esses modos de olhar. Outros exemplares do gênero se seguiram, como “Paralelo 10” e “Martírio”, mantendo um tema (e toda uma população) ao alcance dos olhos.
Hoje, vive-se um triste esvaziamento das salas, em função dos fantasmas da pandemia. Ainda existe uma esperança, por trás de filmes como “Mallandro, O Errado Que Deu Certo” e “Os Farofeiros 2”, de que as classes C e D, ainda chacoalhadas por um movimento de evolução emergente de finanças, possam render sucessos mastodônticos. Ainda se espera muito do fenômeno da comédia varejão, a neochanchada, como Um Tio Quase Perfeito ou Minha Mãe É Uma Peça. Porém, os veios de visibilidade em solo estrangeiro são os filmes brasileiros que se reportam à classe média, como Que Horas Ela Volta ou Aquarius. São duas formas de representação antagônica num Fla x Flu simbólico em torno do fascínio da estabilidade econômica. Cada lado tem um vetor de forças. Os dois se repelem, o que nos gera hoje uma fratura narcísica dentro do setor, que pode gangrenar frente a toda a disparidade de discursos e ao preconceito a ela inerente. Oxalá que uma previsão feita por Cacá Diegues em 1989, em forma de título de filme, Dias Melhores Virão, possa se concretizar agora, e que uma comunhão entre o cinemão e o cinema dito alternativo se faça viável. Sem ela, os dois perdem.
Sobre o Passado, bem… Pioneiro da brasilidade nas telas do cinema verde e amarelo, o diretor Humberto Mauro (1897-1983) fundou, a partir de filmes (de curta e longa metragem), a imagem inicial de POVO que o Brasil utilizou para se enxergar a partir das telas. Começou em 1925, com ‘Valadião, o Cratera’, a partir do qual conceitos de brasildade ganham a cena, substituindo uma paleta arquetípica de signos importados de filmes estrangeiros, em especial os franceses. Era um Brasil de folhetim o que havia no Primeiro Cinema, o mudo, cujo pilar ficcional é um polar (thriller policial) à moda europeia. Havia uma exceção – mas não estudada ou respeitada – nos filmes do patrono da comédia, Lulu de Barros, que dirigiu quase 130 filmes, além de tee sido montador, cenógrafo, roteirista, coreógrafo, dublê de coristas e diretor do primeiro filme queer da América Latina: “Augusto Aníbal Quer Casar”.
Com Lulu – realizador do primeiro filme nacional sonoro, “Acabaram-se os Otários” – nasceu a nossa linhagem de heróis pícaros, o herói malandro, uma herança ibérica sintomática do cansaço do povo contra o abuso dos poderosos, seja na aristocracia, seja no clero. Mas o recorte de Lulu era mais preocupado com a artesania de um cinema que falasse às massas do que com reflexões sociológicas. Humberto Mauro e os filmes dos ciclos regionais de Campinas, Pelotas, Belém e sobretudo de Recife (com o diretor Ary Severo) fundaram uma paleta de cores para a representação dos muitos Brasis no Brasil.
Como os ciclos tiveram um fôlego curto, veio a chanchada e pasteurizou tudo, numa grande Sapucaí onde todo malandro era palhaço e Grande Otelo era o Arlequim maior. E o povo do campo? Esse também foi homogeneizado sob o bigodinho de Mazzaropi.
Foi o Cinema Novo que mudou o quadro, ao levar sociologia a nossos filmes e a questionar o conceito de povo apresentado nas aulas de Moral e Cívica da ditadura. Barravento (1961), de Glauber Rocha, deu a nós os orixás. Cinco Vezes Favela (1962) nos deu uma deixa para a representação das comunidades. E havia o interior fustigado pela fome? Havia. Este se fazia ver por uma expressão geográfica viva, mas doída, trazida a nós por Vidas Secas (1963).
Após Macunaima (1969), o Cinema Novo se cala e a pornochanchada infesta as telas com o adstringente da sacanagem. Só Xica da Silva (1975) faz alguma resistência e, depois, os Trapalhões, com seu Zé Pereira de Sobral, seu Hércules de São Gonçalo, seu arlequim da Mangueira e seu Pinóquio das Sete Lagoas.
Dos anos 1980, restam olhares documentais pras lavouras. Dos anos 1990 e 2000, os olhares para o povo das comunidades e conjuntos habitacionais reféns da violência do tráfico. Hoje, contudo, novas vozes eclodiram, gerando uma corrida de integração de novos veios de nosso povo, eclodindo novas subjetividades. Fragmenta-se o absoluto de um único e sociológico vértice de representação para que nasçam novos Brasis na tela. A chegada de “Retratos Fantasmas”, um filme que celebra a relevância da sala de exibição revela um cuidado com a arquitetura formal da recepção do cinema. E um novo garimpo, uma jazida aurífera de invenção.