RODRIGO FONSECA
Quem acredita que o Diabo não gosta de praia, de sol, de mar ainda não viu o sucesso que o Tinhoso anda fazendo nas salas de exibição comercial de Cannes, em paralelo ao festival anual da cidade. Aliás, esse êxito do Quinto dos Infernos se estende por toda a Côte d’Azur, por cada sala que exibe “O Exorcista do Papa”, com Russell Crowe. Em cerca de 45 dias em cartaz, o longas-metragem de Julius Avery, orçado em US$ 18 mlhões, baseado em fatos reais, já faturou US$ 72 milhões. Na sala Olympia, na Croisette, a procura pelo longa chega a ofuscar titãs como “Fast X”, o novo “Velozes & Furiosos”, com Vin Diesel. Pelo Marché du Film de Cannes, o nome de Crowe já alimenta o elenco de uma série de filmes em produção.
Lançado mundialmente no fim de semana de Páscoa, desafiando a beatitude da data com sua trama horrorífica com a desculpa de lotar salas, “O Exorcismo do Papa” tornou-se um inusitado êxito comercial sobretudo em países católicos. Este ano, sucessos como “M3Gan”, “Pearl” e “13 Exorcismos” se estabeleceram no gosto popular à força da transgressão, mostrando o quanto o horror pode ser a maior diversão. Não por acaso, há uma espécie de nova versão (ou sequência) do cult “O Exorcista” sendo rodado neste momento nos EUA, sob a direção de David Gordon Green. Mas há no longa que faz referência ao sumo pontífice católico uma curiosidade: trata-se de terror com herói. Quase um super-herói de batina. Seu personagem central, uma figura real, é o padre Gabriele Amorth (1925-2016), um intelectual brilhante, que foi um esgrimista da gramática numa trajetória paralela como escritor e jornalista, sem nunca ter largado a batina, desde o fim da II Guerra Mundial. Há livros dele lançados aqui. Porém, ele é mais lembrado por seus deveres oficiais como inimigo juramentado do Diabo na Terra. E Russell Crowe, numa interpretação em estado de graça, transforma sua figura numa espécie de justiceiro da fé.
Com livros publicados em português como “Vade Retro, Satanás!” (ed. Canção Nova) e “Não Te Deixes Vencer Pelo Mal” (ed. Ecclesiae), Amorth costuma ser lembrado por ter sido o Exorcista Chefe do Vaticano. Coube a ele combater manifestações até hoje contestadas pela ciência que vulnerabilizaram corpos em todo o mundo. Crendo ou não na liturgia católica (ou em qualquer credo), é impossível não se aplaudir seu empenho humanista de defender pessoas fragilidades de intempéries da alma, que uns chamam de surto e outros, de possessão. Em 2017, ele teve sua história narrada pelo cineasta William Friedkin (diretor de “O Exorcista”) no documentário “O Diabo e o Padre Amorth”. Agora é a vez de ele virar ficção, ainda que postumamente.
No novo filme de Julius Avery (de “Operação Overlord”), deitando e rolando no carisma de um Russell Crowe afinzão de brilhar, Amorth vira tema de um horror raiz, sem pudor de assustar. A toda hora, a narrativa apela para o jump scare (susto), utilizando a carpintaria gráfica de sua direção de arte, de sua maquiagem e de seus efeitos visuais para mostrar que o demônio encarnado no corpo de um menininho é Diabo com D maiúsculo. É filme pra gelar a espinha. Crowe demonstra uma disposição pra brilhar como há muito não se via. Avery, que dirigiu Sylvester Stallone em “Samaritano”, tira do astro de “Gladiador” (2000) uma atuação garbosa. A trama aposta pesada na hipótese da incorporação de pessoas por forças das trevas ao assumir um caso, ambientado na Espanha, no fim dos anos 1980, no qual uma viúva vinda dos EUA, Julia (Alex Essoe), tem seu caçula, Henry (Peter DeSouza-Feighoney), tomado por um diabrete cujos poderes desafiam a perspicácia dos clérigos do Vaticano. Numa decisão sábia da produção de elenco, o diretor aceitou trazer Franco Nero, o eterno Django, para encarnar o Papa. Foi uma escolha perfeita.
Apoiado na fina fotografia de Khalid Mohtaseb, “O Exorcista do Papa” ainda abre uma discussão necessária sobre os delitos morais da Igreja, como abusos sexuais. A investigação comandada pelo sacerdote encarnado por Crowe aborda negligências (reais) do passado e fala frontalmente sobre Santa Inquisição, o movimento repressor que é muito bem explicado no roteiro moldado por Michael Petroni e Evan Spiliotopoulos, a partir de um argumento de R. Dean McCreary, Chester Hastings e Jeff Katz, baseado nas memórias do próprio Amorth. Acerca da competição pela Palma de Ouro deste ano, os dois melhores títulos entre os onze filmes já exibidos são “Anatomie d’Une Chute”, de Justine Triet, e “Firebrand”, de Karim Aïnouz. Faltam dez, entre os quais o esperadíssimo “Fallen Leaves”, de Aki Kaurismäki.