RODRIGO FONSECA
Nada que passou por Cannes até agora se compara à excelência de “Indiana Jones e a Relíquia do Destino”, que ilustra bem o quanto Harrison Ford pode nos surpreender, sempre. Mas há uma leva de títulos que já garimparam o aplauso local. Saca só:

‘THE ZONE OF INTEREST’, de Jonathan Glazer: O que prometia ser o longa-metragem mais atacado de toda a competição foi, até agora, o mais aplaudido e é, de longe, o mais ousado, apoiado na força descomunal da atriz Sandra Hüller, ainda que vista sempre de soslaio pela câmera, com distanciamento, no papel de Hedwig Höss. A vida idílica que essa alemã parece ter encontrado na primeira metade dos anos 1940 esbarra com o fato de sua casa ficar ao lado do campo de concentração de Auschwitz, cujo comandante é seu marido, Rudolf (Christian Friedel). A fumaça das câmeras gás é a medida as loucuras onde ela vive. Diretor de “Sob a Pele” (2014), o ás do videoclipe se supera na construção de sua dramaturgia de planos.

‘NELSON PEREIRA DOS SANTOS – VIDA DE CINEMA’, DE IVELISE FERREIRA E AÍDA MARQUES: A longa devoção de Aída à docência na UFF fez com que ela trouxesse de sua vida acadêmica uma precisão de ourives na hora de cerzir imagens de arquivo do realizador de “Vidas Secas” (1963), numa parceria com a viúva do diretor. Laís Rodrigues merecia um prêmio especial do júri do troféu L’Oeil d’Or (láurea a que o .doc concorre na Croisette) pela pesquisa de imagens do Brasil que Nelson exumou numa autopsia em corpo vivo de nossa gente. É um aulão de roteiro de não ficção.

‘THE OCCUPIED CITY’, DE STEVE MCQUEEN: Um estudo documental do diretor de “Small Axe” sobre a ocupação dos nazistas na Holanda, a partir de uma pesquisa arquitetônica. Com base em livro de Bianca Stigter, o realizador faz um paralelo entre a Holanda de hoje, à sombra das sequelas da pandemia, e a Holanda dos tempos do nazismo.

‘SIMPLE COMME SYLVAIN’, DE MONIA CHOKRI: Um estudo avassalador sobre a incontinência do amor a partir das inércias que o prejudicam. Uma professora de Filosofia (Magali Lepine-Blondeau) passou dez anos mornos, mas, fiéis, ao lado de um namorado socialmente perfeito para seu status. Mas o convívio súbito dela com um pedreiro faz-tudo vai mudar sua forma de saber querer e de se deixar cuidar. Um roteiro impecável que desconstrói clássicos como “Harry & Sally”.

‘LOS DELINCUENTES’, DE RODRIGO MORENO: Aula de roteiro da Argentina numa narrativa de três horas de absoluta precisão, onde nenhum segundo se perde ou se dilata. Há bom humor, lirismo e cenas de sexo cálidas, mas sem objetificações. Daniel Elías tem atuação prodigiosa no papel de um banqueiro que resolve passar três anos preso, por um roubo que cometeu em sua agência, por acreditar que aquele tempo compensaria os 20 penosos anos que ainda teria pela frente como bancário. Um amigo looser vai ajuda-lo nesse período, cuidando de uma mala de dinheiro roubado. Mas, uma mulher vai se impor no caminho deles.

‘CONANN’, DE BERTRAND MANDICO: Cineasta não-binário, o realizador de “After Blue (Paraíso Imundo)” (2021) vinha evocando, de maneira jocosa, alusões ao bárbaro criado em 1932 por Robert E. Howard (1906-1936) na literatura Pulp, celebrizado nas HQs Marvel nos anos 1970 e imortalizado por Schwarzenegger. Mas, em seu filme, o signo muda: Conann é uma amazona, das mais temidas, e sua história é narrada por um oráculo com seios. Como de costu, DE me na obra de Mandico, a direção de arte é um primor.

‘JEUNESSE (LES PRINTEMPS)’, DE WANG BING: Ganhador do Leopardo de Ouro do Festival de Locarno, na Suíça, com “Mrs. Fang”, em 2017), o cineasta chinês busca muito mais a dimensão afetiva dos universos que documenta. “Jeneusse” investe três horas e 32 minutos na construção dum painel de aspirações, desilusões e esperanças de uma gama de jovens operários da indústria têxtil de “Zhili”, a 150 km de Xangai, numa grande Comédia Humana.