Rodrigo Fonseca
Uma das formas mais simples para se saber mais (e melhor) sobre o que sobrou desta pátria depois que única presidenta eleita por voto popular de nosso país foi alvo de um caça às bruxas é embarcar, com a dialética debaixo do braço, no trem-bala chamado “O processo”: a passagem você compra no Canal Brasil. Vai ter projeção nele nesta quarta, dia 27, às 20h, na faixa É Tudo Verdade. A diversão só não é garantida por ser um filme de alumbramentos e assombros, marcado por um dos trabalhos de montagem mais criativos de nossa história audiovisual – mérito de Karen Ackerman. Foi ela quem editou as quase 400 horas de material filmado por Marias Augusta Ramos ao acompanhar os bastidores do impeachment.

Existem filmes de guerrilha ligados ao torvelinho da História de seus países que entraram para a posteridade do cinema pela acuidade e pela urgência com que registraram e reagiram a conflitos de suas terras, como é o caso de “A Batalha de Argel” (1966), “Z” (1969), de Costa-Gavras, e “Crônica dos Anos de Fogo” (1975). Recebido com loas e prêmios na Europa, “O processo” se candidata a entrar nesse grupo. Com uma agilidade de dar taquicardia, o filme de Maria Augusta é o atestado de óbito da democracia brasileira – ainda que ressurreições possam acontecer nas próximas eleições. Sua narrativa foi erguida a partir dos julgamentos de Dilma, revisados como se fosse um teatro de dissimulações. Longas seminais sobre o Direito neste país, “Justiça” (2004) e “Juízo” (2007) consagraram a estética de Maria Augusta: não importa qual seja o tema e o objeto que o traduza, ela vai partir dele para flagrar a natureza encenadora (e retórica) do ser humano num embate de ideias. Alguém sempre está representando, consciente ou não da câmera ligada, em um jogo semântico de argumentações com seu próximo. Isso vale para menores infratores, para corretores da Bolsa de Valores de SP ou para Aécio Neves. Essas encenações se desvelam diante das lentes da diretora, como evidências da sociedade do espetáculo (aquela sobre a qual ofilósofo Guy Debord escrevia), num teatro de guerra. E cada instituição tem a Antígona que merece: o Congresso tem uma tragédia grega, de aparentes mocinhos (Lindbergh Farias, Jean Wyllys), de potenciais vilões (como Bolsonaro, Eduardo Cunha, Janaína Paschoal) e de Tirésias (Lula), reescrita à luz de Kafka.

Na edição, acertos e erros de ambos os lados do Poder (sobretudo do PT) vão sendo revelados a cada depoimento como se fossem viradas num roteiro de novela. Na tela, pessoas de carne, osso e cargo político teatralizam seus ritos num tribunal onde as utopias que nos restaram sentam no banco dos réus. É um espetáculo triste. Mas merece um grito de “Bravo!” e nossa atenção na telinha.