RODRIGO FONSECA
Porta-voz da preservação da filmografia de Stanley Kubrick, sobretudo da sci-fi “2.001 – Uma Odisseia no Espaço” (1968), o inglês Christopher Nolan deu um olé em Hollywood quando fez “Dunkirk” (2017), um dos mais vigorosos exercícios autorais de uma carreira esboçada a partir de 1989, com o curta-metragem “Tarantella” e delineada a partir de seu longa-metragem de estreia, “Seguinte”, de 1998. Ao recriar a batalha que redefiniu os rumos do Reino Unido no combate contra o Eixo, o cineasta londrino (hoje com 52 anos) escalou atores, atrizes, técnicos e técnicas egressos da Inglaterra, da Escócia, do País de Gales e da Irlanda para levantar um projeto da hollywoodiana Warner Bros. deixando profissionais dos EUA pra escanteio. Gastou dinheiro dos Estados Unidos para celebrar o brio britânico e a resiliência de europeus que se opuseram a Hitler. De volta a II Guerra, agora para narrar a vida e os feitos do físco J. Robert Oppenheimer (1904-1967), ele repete parcialmente a estratégia, calçando-se do ator irlandês Cillian Murphy como seu protagonista, equilibrando estrelas inglesas com talentos (em estado de graça) das trupes estadunidenses, sobretudo Robert Downey Jr. Seu modo de operar numa indústria hoje em greve, respeitando as lutas sindicais, angariou respeito da classe e o apreço do público, com um faturamento estimado em US$ 180 milhões em cerca de seis dias em cartaz pelo mundo. Seu orçamento: US$ 100 milhões.
Eternizado no imaginário pop como Tony Stark, o Homem de Ferro, Downey Jr. é o hidrogênio que areja a atmosfera plúmbea de um filme construído para “ser pra sempre”. Dublado aqui pelo craque da voz Marco Ribeiro, o Vingador Dourado da Marvel consegue, enfim, um papel capaz de lhe garantir o Oscar há tempos merecido, mas como coadjuvante. O protagonismo é de Cillian, astro de “Peaky Blinders”, série que é fetiche dos fãs de máfia. Dois diálogos servem de bússola à briga dos dois:
a) “Genialidade não garante sabedoria”;
b) “Vocês procuram o sol, só que o Poder reside nas sombras”.

Cillian Murphy ganha a voz de Jorge Lucas na versão brasileira do fenomenal longa do inglês Christopher Nolan, que pode render indicações ao Oscar para seu elenco estelar

A frase acima é dita pelo almirante Lewis Strauss, intelectual autodidata que busca exterminar a reputação de Oppenheimer, cientista a quem contrata para criar uma arma nuclear, sugando dele aquilo de que a América necessitava em meio ao conflito militar contra os japoneses, no Pacífico. A necessidade em questão: a bomba atômica. Oppenheimer dá uma a seu povo. O jogo de sedução mefistofélico, mais tarde convertido em caça às bruxas, empreendido por Lewis consagra Downey Jr., embora Cillian consiga evocar Burt Lancaster… aquele Lancaster de “O Leopardo” (1963).
Ao longo de três horas, Cillian serve de arauto a Nolan numa aula de geopolítica finíssima, que carrega toda a assinatura formal e filosófica de um realizador que despontou aos olhos da crítica com “Amnésia”, em 2000 e virou objeto de culto (e também de ódio) com a trilogia “Batman” (2005-2012). Tal assinatura se expressa em seu fascínio em relação a episódios que mudaram a História; no interesse pela gênese do mal e sua banalidade; e em seu encanto pela dimensão humanista da Ciência. Desde o incompreendido “Tenet” (2020), hoje na HBO Max, ele vem se debruçando sobre a Guerra Fria. Sempre dando visibilidade a elencos vindos da Grã-Bretanha. Traz consigo o sueco Ludwig Göransson nas carrapetas da trilha sonora e conta com o suíço Hoyte van Hoytema na direção de fotografia. Van Hoytema alterna cirurgicamente um colorido retinto e um preto & branco em tons de chumbo.

O veterano Tom Conti brilha como Einstein, numa participação comovente em cena

Já está à venda no Brasil o livro que serve de base ao roteiro de Nolan: “Oppenheimer: O triunfo e a tragédia do Prometeu americano, de Kai Bird e Martin J. Sherwin (traduzido aqui por George Schlesinger). Saiu aqui pela Intrínseca. A leitura que Nolan faz dele grifa passagens mais próximas da ontologia e do existencialismo que da lógica matemática. Cillian dá conta delas muito. Existe nesse diálogo de Nolan com a prosa de Bird e Sherwin algo do cinema de “modernidade tardia” de John Frankenheimer (“Sete Dias de Maio” e “Sob o Domínio do Mal”) em sua austeridade. E há uma reverência a um certo cinema inglês de (muito) outrora, sobretudo o de Carol Reed (“O 3° Homem”), na construção da atmosfera de crescente paranoia num enredo que gravita entre o processo de feitura da bomba atômica e o cerco ao passado de simpatizante comunista de Oppenheimer.

É notável a troca entre Cillian e a atriz Florence Pugh, num desempenho notável no papel da ativista de esquerda Jean Tatlock. A interação dos dois desafia os AITs (Aparelhos Ideológicos de Estado) do politicamente correto. Igualmente tocante é a aparição de Tom Conti (o Mr. Lawrence de “Furyo: Em Nome da Honra”) como Albert Einstein.