RODRIGO FONSECA
Estima-se que a Berlinale vá passar o dia tentando decifrar “Sêneca”, um experimento à moda Júlio Bressane com John Malkovich no papel do filósofo romano, mas, em sua ruminação, ao digerir o longa de Robert Schwentke, o festival germânico celebra a consagração recente da prata da casa, mesmo sem ela estar em sua programação: no caso, “Nada De Novo No Front”, da Netflix, e sua arrebatadora consagração no Bafta. Indicado a nove Oscars, a produção alemã de maior aclamação mundial em 2022 papou sete estatuetas na cerimônia anual de premiação promovida pela cinefilia britânica. Por todos os cantos de Berlim há um cartaz do longa.
Sua estreia internacional ocorreu em setembro, no TIFF – Festival Internacional de Toronto, no Canadá, seguida por uma exibição na Mostra de São Paulo. “Im Westen nichts Neues” (seu título original) é dirigido por Edward Berger (cineasta da Baixa Saxônia, com 31 anos de carreira, indicado ao Urso de Ouro, em 2014, com “Jack”). Sua narrativa tensa é uma releitura do romance homônimo publicado por Erich Maria Remarque (1898-1970) em 1928, nas páginas de um jornal, o “Vossische Zeitung”. No ano seguinte, o texto saiu em livro e virou best-seller. Em 1930, Lewis Milestone (1895-1980) levou a prosa de Remarque às telas e ganhou o Oscar de melhor direção pelo empenho. Pode haver uma indicação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas pra versão de Berger, chamada “All Quiet on the Western Front” nos EUA, uma vez que foi o longa escolhido pela indústria cinematográfica alemã para representar o país na disputa pela estatueta de Melhor Filme Internacional, em 2023. Seu foco são as trincheiras da Europa entre 1914 e 1918, ou seja, a I Guerra Mundial. E sua trajetória no streaming desperta reflexões sobre o saldo das ofensivas russas contra a Ucrânia, que assombram o planeta desde o início do ano.
Seu elenco traz um dos mais consagrados atores do Velho Mundo no momento, o teuto-espanhol Daniel Brühl, que surpreendeu o mundo em 2003 com “Adeus, Lênin”. Ele vive Matthias Erzberger, um escritor e político alemão, que se pronunciou contra o espírito bélico de sua pátria em 1917. Foi assassinado em 1921 por um grupo terrorista de direita. Num atentado anterior, em janeiro de 1920, Erzberger – então ministro das Finanças – ficara apenas ferido. No dia 26 de agosto de 1921, quando fazia uma caminhada durante as férias em Bad Griesbach, na Floresta Negra, ele foi baleado por dois ex-oficiais da Marinha, integrantes da Organisation Consul, uma célula direitista. Seus agressores fugiram para o exterior, voltando ao território alemão pouco mais tarde, beneficiados por uma anistia concedida pelos nazistas, que perdoava os “crimes cometidos em nome do interesse nacional”. Já durante a República de Weimar, conforme chocava o ovo da serpente do nazismo, o assassinato foi considerado um “ato heroico”.
Fiel à trama de Remarque, o filme de Berger segue os adolescentes Paul Baumer (Felix Kammerer) e seus amigos Albert e Muller, que se alistam voluntariamente no exército alemão, animados por uma onda de fervor patriótico que se dissipa rapidamente quando enfrentam as realidades brutais da vida na frente. Os preconceitos de Paul sobre o inimigo e suas certezas políticas acerca do conflito logo se desmoronam. Entretanto, em meio à contagem regressiva para um armistício, construído a partir do trabalho de Erzberger (Brühl), Paul deve continuar lutando até o fim, sem outro propósito que não seja satisfazer o desejo dos mais altos escalões de hierarquia de acabar com a guerra em uma ofensiva alemã.
Nesta segunda, a Berlinale vai conferir um thriller mucho loco com Willem Dafoe chamado “Inside”, de Vasilis Katsoupis. Em sua trama, o larápio Nemo (Dafoe), especializado em roubar de obras de arte, fica trancado em um apartamento, sem chance de sair, depois que um crime dá errado, e vai enlouquecendo pouco a pouco, no que promete ser uma narrativa febril.
Até o momento, o filme em competição com mais chances de levar o Urso de Ouro pra casa é “Disco Boy”, de Giacomo Abbruzzese, sobre um o choque de um recruta da Legião Estrangeira com militante da luta contra as exploradoras de petróleo. O festival segue até o dia 26.
Até o momento, a produção mais bem falada de todo o evento é “El Eco”, de Tatiana Huezo (México). Nele, a diretora do premiadíssimo “Reze pelas Mulheres Roubadas” (2021) pode abocanhar os troféus da mostra Encontros com este documentário sobre um vilarejo mexicano que parece parado no tempo, castigado pelo frio e por secas, no qual jovens cuidas de suas avós, assim como tomam conta de rebanhos carentes de melhores condições. É uma metáfora entre a natureza humana e a vida animal.