RODRIGO FONSECA
Com o Leão de Ouro Honorário de 2019 nas mãos, o espanhol Pedro Almodóvar viu as rugas existenciais de seu imaginário refletidas no prêmio conquistado na quinta-feira, na arrancada do 76º Festival de Veneza: “Histórias sobre a passagem do tempo na vida das pessoas passaram a assaltar meu olhar depois que cheguei aos 60… e já estou quase nos 70”, diz o cineasta, cujo filme mais recente, “Dor e glória”, já soma cerca de 220 mil pagantes no Brasil. “Eu amo muito o país de vocês, por uma afinidade de alma com a sua cultura, e fiquei muito feliz quando Caetano Veloso, meu grande amigo, disse uma vez que eu sou um ‘diretor brasileiro’, pelo meu estilo barroco”.
Declara-se um fã do país de Caetano foi uma das peripécias de Almodóvar em Cannes, onde “Dolor y gloria” (título original) rendeu o prêmio de melhor ator a seu muso de início de carreira, Antonio Banderas, devastador nessa história sobre finitude. Há quem diga que o filme e ele vão disputar o Oscar de 2020 nos EUA. Encarado por muitos como o trabalho mais autobiográfico de Almodóvar, embora o próprio diretor diga que todas as suas tramas têm essa natureza de espelhamento de suas experiências pessoais, o longa narra o sofrido cotidiano de um cineasta e escritor, Salvador Mallo (papel de Banderas), que lida com problemas de coluna e com uma severa doença gástrica que o sufoca. Salvador desistiu da arte e dos prazeres do dia a dia. Mas o reencontro com um ator com quem brigou no passado e um mergulho no mundo das drogas vai sacudir a pasmaceira de seus dias, levando-o a um reencontro com as memórias da mãe, vivida por Penélope.
Muitas sequências de “Dor e glória” caíram nas graças da crítica e viraram tema de conversa e até alvo de suspiros, dada a beleza plástica das imagens fotografadas por José Luis Alcaine. A mais comentada é o beijo trocado entre Salvador e seu ex-namorado, Federico (o galã Leonardo Sbaraglia, de “Relatos selvagens”). “Banderas é um mar aberto”, elogia Leonardo.

Indicado várias vezes à Palma de Ouro, o artesão autoral do melodrama espanhol – ou “almodrama”, como seu amigo Caetano define seus filmes – jamais recebeu a cobiçada láurea. Em 2006, saiu da Croisette com o prêmio de melhor roteiro por “Volver” e, em 1999, ganhou o de melhor direção por “Tudo sobre minha mãe”, considerado sua obra-prima até agora. Mas um Leão dourado ele já tem. “Quando você fala de si mesmo na arte, há sempre a hipótese de incluir a vida de outras pessoas, que cruzaram a sua história, nessa narrativa e afetá-las de alguma forma. É preciso consciência nisso que chamam de autoficção”, diz Almodóvar.


Sobre “Dor e glória” vale dizer…
Num papo com uma amiga, confrontado com a pergunta “Se não vai mais escrever nem filmar, o que você vai fazer?”, o cineasta Salvador Mallo, protagonista de “Dor e Glória”, talhado de um mármore reluzente chamado Antonio Banderas, responde o que pode: “Viver, suponho”. É um desabafo franco, sem muito espaço para digressões ou para metáforas que inflem de glacê um bolo saboroso em sua (aparente) franciscana simplicidade de ingredientes, como só Pedro Almodóvar sabe assar. A saga de Mallo brota como estandarte de equilíbrio a flamular entre os dois hemisférios da obra do diretor espanhol, aqui em momento de apogeu numa espécie (indireta) de autobiografia. Existia o Almodóvar de excessos furiosos, na navalha da chanchada, como o de “Áta-me” (1989) e de “Maus hábitos” (1983). E existia o Almodóvar dos excessos cinéfilos folhetinescos, no transbordamento de querências e carências, como o de “Carne trêmula” (1997) e de “Fale com ela” (Oscar de melhor roteiro, em 2003). Agora, há um caminho do meio, um equilíbrio de cascos de centauro entre esses dois modos de estar na tela, com paixão em estado líquido, em ebulição. Logo, seu novo filme é carnaval.
Devastador é a palavra para definir a volta do realizador de “Tudo sobre minha mãe” (1999) às salas de projeção, com seu melhor filme em quase duas décadas, coroado em Cannes com a láurea de melhor trilha sonora para o compositor Alberto Iglesias e com o prêmio de melhor ator dado a Banderas – merecidíssimo. Fotografada com um colorido berrante por José Luis Alcaine, esta trama trata do ocaso (e posterior redenção) de Salvador Mallo (papel de um grisalho e inspiradíssimo Banderas), que, cansado da vida, agrilhoado à solidão, acossado por dores da espinha e por uma doença gástrica (similar a um engasgo), solta-se em inércia por dias vazios de sentido e de afazeres.
Cada engasgo de Mallo parece traduzir a incapacidade absoluta de ele digerir as lacunas que não foram preenchidas em sua relação com um ator do passado (o caudaloso Asier Etxeandia), com o namorado de juventude (Leonardo Sbaraglia) e com as expectativas de sua mãe (Julieta Serrano). É o engasgo de quem ainda precisa dizer algo que não foi dito. Ou filmar o que não se filmou. Por isso “Dor e glória” parece a autópsia de um corpo vivo, por exumar um cadáver que ainda não sucumbiu ao Tempo ou a degradação de si mesmo. No roteiro, Almodóvar faz a dramaturgia se esgarçar por caminhos inusitados, incorporando até chapas ortopédicas (em forma de animação) em sua narrativa, saudado pela revista “Cahiers du Cinéma” como um dos acontecimentos cinéfilos de 2019. Entre distrações, doses de heroína, caminhadas inertes (um tanto parecidas com a do cineasta Guido Contini, de Daniel Day-Lewis em “Nine”) e reinações em sua própria angústia, Mallo faz uma evasão até antigamente, onde esbarra com sua mãe mais moça, encarnada por uma divinal Penélope Cruz. Talvez seja no ontem, naquilo que para Almodóvar (só nele… e no olhar encantado da gente) é futuro do pretérito e não a mais que perfeita ilusão de “já se foi”, resida uma saída. A fagulha que possa incendiar a fogueira Mallo.

Sabe-se que a fogueira Almodóvar já ardeu com mais continuidade n’outros tempos, não só os tempos de sua mocidade, mas tempos de menos caretice no mundo, que, hoje, encontra-se na Idade Média quando se fala em desejo e em corpo. Talvez por isso, “Dor e glória” pareça uma reação, um basta, uma resposta desesperada. Uma resposta em forma de “esta é minha vida”. Mas, há que se ter cautela nisso, pois Almodóvar afirmou em Cannes, em 2016: “Jamais vou permitir uma biografia minha, pois a história de minha vida está dividida entre cada um dos filmes que filmei”. É uma cautela que se relativiza quando se lembra de Fellini, a dizer: “Assim como toda pérola é a autobiografia da ostra, todo filme é a biografia de seu diretor”.
Mas há um passo além na relação especular entre autor e obra aqui. Até roupas de Pedro foram usadas em “Dor e Glória” como modelo do vestuário de Salvador, um cineasta cheio de crises em sua vida amorosa, em sua relação com as drogas e em sua saúde. Ele busca a paz com o astro de seu primeiro filme, que acaba de ser desenterrado para uma exibição em uma cinemateca espanhola.

Lançado em março na Espanha, o longa-metragem foi relacionado pelo próprio Pedro a “Má educação” (2004) e “A lei do desejo” (1987), como se fosse parte de uma trilogia do eu, uma tríade do masculino emasculado. “Dolor y Gloria” pode ser um bom exemplar do chamado almodrama (termo de Caetano Veloso), uma releitura folhetinesca dos afetos a partir de parâmetros que não são da realidade e sim do legado histórico do melodrama. “Julieta”, que ele levou ao festival francês em 2016, já era um exemplo disso.
Há quem classifique o filão de metamelodrama. Esse rico verbete é parte das pesquisas de dramaturgia feita pelo professor José Carvalho (considerado o mais prestigiado teórico sobre roteiro no Brasil, que leciona como escrever para cinema e TV no Rio e em São Paulo na Oficina Roteiraria [http://www.roteiraria.com.br/]). Com base nas reflexões antropológicas do americano David Bordwell e nos ensaios geopolíticos do português João Maria Mendes, Carvalho consolidou essa expressão a partir da ideia de que o realizador de “Áta-me” (1989) cria seu universo com base no tecido visual “vivo” derivado do melodrama clássico e de suas releituras modernas, de Douglas Sirk a Rainer W. Fassbinder.
Confirmou-se que o filme vá ser tema de debates no Festival de San Sebastián (20 a 28 de setembro), no norte da Espanha, uma vez que o evento escolheu Penélope para receber a honraria Troféu Donostia deste ano.

Vá para onde for, “Dor e glória” há de comover, há de incomodar e há de se firmar como um dos melhores filmes deste ano e um dos melhores momentos de seu realizador. Vivo e vivaz.

Veneza chega ao fim do no dia 7 de setembro, com a entrega de prêmios e a exibição fora de concurso do drama anglo-italiano “The Burnt Orange Heresy”, de Giuseppe Capotndi, com o rolling stone Mick Jagger no elenco.