RODRIGO FONSECA
Alvo de múltiplas patrulhas em Cannes, ovacionado em Locarno, onde foi projetado em praça público (a Piazza Grande), debaixo de chuva, “Era uma vez em Hollywood” chegou à marca de 1 milhão de ingressos vendidos no Brasil, batendo todos os recordes esperados por exibidores nacionais – coisa similar ao que acontece com o filme cá em Oslo, na Noruega. Aliás, o novo Quentin Tarantino faz bonito por onde passa: sua bilheteria beira US$ 330 milhões pelo mundo e, em terras escandinavas, pré-“Rambo: Até o fim”, ele é rei. Por aqui, nos cinemas locais, em especial a Cinemateca de Oslo, seu pôster está estampado por todas as paredes… ao lado do regresso de John Rambo e do ganhador do Leão de Ouro, “Coringa”.

Por um soldo de US$ 200 semanais, Quentin Jerome Tarantino passou o ano de 1985 batendo ponto na Video Archives, uma locadora de Manhattan Beach, Califórnia, onde fez amigos, reais e imaginários, devorando o acervo local, sobretudo o faroeste “Rio Bravo” (aqui “Onde começa o Inferno”), de 1959. É do VHS que vem a depuração de sua cultura cinematográfica, reforçada com o DVD, que chega ao convívio dos cinéfilos num momento em que ele já é um diretor de respeito, com “Jackie Brown” (1997) em seu currículo. Mas o universo das fitas rebobinadas do Video Home System foi essencial para ele. A partir do início da década de 1980 quando a tecnologia informática permitiu o advento dos retângulos analógicos do VHS, toda a memória fílmica produzida no mundo, até aquele momento, encontrou um escoamento (e um veio de preservação) biblioteconômico, que nos permitiu acesso a cópias, por exemplo, de uma comédia de Harold Lloyd (1893-1971) feita em 1919. O VHS alfabetizou uma nova linhagem de cinéfilos e reeducou o olhar dos mais velhos, criando, em ambos, uma percepção de que a realidade – do Presente e do Passado, sobretudo – é mediatizada, ou seja, existe o passado real, concreto, e existe o passado que o cinema nos ensinou. Nossa ideia da Chicago dos gângsters não é a Chicago dos documentos, calcada em fatos: nossa Chicago é a de Brian De Palma em “Os Intocáveis”. Ou seja… verdade dá lugar a simulacros. E simulacros produzem simulações da vida, ou seja, uma meta-vida, onde imagem não é só um corredor que nos leva a experiências sensíveis: imagem é a experiência em si. E o novo – e comovente – filme de , “Era uma vez… em Hollywood”, é uma delas. Das melhores. Dos seus melhores.

O que a práxis do simulacro produziu foi um meta-cinema. Veja, por exemplo, o caso de alguns de seus maiores artesões. Pedro Almodóvar (“Fale com Ela”) e Wong Kar-Wai (“Amor à Flor da Pele”) criaram com base em seu mergulho em mestres do cinema e do folhetim (Vincente Minelli e Douglas Sirk, sobretudo) uma ideia de meta-melodrama, ou seja, uma reflexão sobre os sofrimentos do querer calcados não em registros do Real, mas em noções de amar, sofrer, perder e reconquistar que o Cinema ensinou a eles. Já Tarantino (“Bastardos Inglórios”) passou os últimos anos dedicado à lapidação do que podemos chamar de meta-faroestes: os geniais “Django Livre” (2012) e “Os Oito Odiados” (2015) não são apreensões reais de questões do Oeste “de verdade”, mas sim do Oeste de papelão que Hollywood e os spaghetti italianos nos legaram. São “mentirinhas” erguidas sobre “mentirinhas”, ficção da ficção. Simulacros. Seu “Once upon a time… in Hollywood” é meta também, mas metacinema. Foi o rótulo que ele ganhou em sua passagem por Cannes e, mais recentemente, pelo Festival de Locarno, que chega ao fim neste sábado.

Divididos entre a competição pelo Leopardo de Ouro e dez mostras paralelas, os 250 filmes da 72ª edição de Locarno tiveram como carro chefe, em termos de popularidade, a viagem de Quentin Jerome Tarantino ao ano de 1969 e às agonias da contracultura de um ano que não acabou, exibidas no evento suíço debaixo de litros de chuva. Quente como um forno, Locarno banhou-se com o suor frio do Céu na sessão de “Era uma vez em Hollywood”, vista por uma multidão ensopada que não arredava o pé e o bumbum das cadeiras de plástico da Piazza Grande, apaixonadas por aquele movimento proustiano de decantação do tempo perdido do Cinemão. Um exibidor latino-americano, conhecido aqui da “Metrópolis”, com os lábios sorridentes de encanto pelo gingado de Margot Robbie, olhava aquele espetáculo e dizia com convicção: “Vai ser um fenômeno, pra jogar a grife Tarantino para a raia dos milhões”. O lápis confirma a tese do hermano: somando-se os oito e ½ filmes rodados e lançados por QT de 1992 até hoje (o mezzo se refere aos dois volumes de “Kill Bill”), temos uma arrecadação que beira US$ 1,5 bilhão e um balde Oscars. E, de 26 de julho pra cá, “Once upon a time… in Hollywood” já papou US$ 113 milhões, comprovando-se um ímã de espectadores. Há muita má vontade contra o filme, alimentada por uma certa histeria midiática contra o apreço que o diretor tem pela exumação da violência e por suas personagens mulheres marginais. Mas nada que se diga de azedo contra o filme pode arranhar seu viço.
Dizem que Brad Pitt leva o prêmio de ator coadjuvante por sua magnética participação. No filme, ele vive o melhor amigo e parceiro de trabalho de um astro de TV em decadência, encarnado por Pitt é um dublê com um passado trágico, o viajandão Cliff Booth. DiCaprio é o ator Rick Dalton, um astro de séries de faroeste que está vivendo uma fase de ocaso e que busca a volta por cima. Booth o substitui em cenas perigosas e é seu motorista, com direito a uma hilária luta imaginária com Bruce Lee. Booth é ainda testemunha de um amor que se instaura na casa vizinha ao lar de seu amigo e chefe: a casa dos Polanskis, onde Roman (o diretor) vive com a atriz Sharon Tate. Saudado como obra-prima por alguns e como um equívoco para outros, em sua passagem por Cannes, esta viagem à História americana, como foco na indústria do audiovisual (a TV e o cinema), estrutura-se a partir de uma visita de Tarantino ao ano de 1969.
Foi nessa data que a modelo e atriz em ascensão Sharon Tate, então grávida do cineasta franco-polonês Roman Polanski (famoso por “O bebê de Rosemary”), foi morta pela seita do maníaco Charles Manson. Quem encarna Sharon é a australiana Margot Robbie, que viveu a mulher de DiCaprio em “O Lobo de Wall Street” e que, segundo línguas ferinas da Croisette, esteve na cidade aos flertes com Pitt. O desempenho dela é um chamariz para prêmios: Margot, a Arlequina de “Esquadrão Suicida” (2016), quase não usa palavras para encarnar Sharon, interpretando-a como se ela fosse uma entidade, um espectro de um tempo perdido.
Falar em Tarantino é falar em receitas astronômicas, mas também é falar em reinvenções do código histórico, numa lógica de metanarrativa: em seus filmes o Passado, aquele com “P”, não se faz da História, aquela com H, e sim com o próprio Cinema… com a história que os filmes fabricaram. Daí o juízo final de Hitler em “Bastardos Inglórios” (2009). Formado (e cultuado) como realizador a partir de uma trilogia sobre malandragem, reunindo “Cães de aluguel” (1992), “Pulp fiction” (1994) e “Jackie Brown” (1997), Tarantino dedicou a porção inicial de sua obra como cineasta a experimentar um novo modelo de estrutura dramatúrgica, calcado em inversões da ordem narrativa e no diálogo coloquial. Dali, assinou a carta de alforria para que o pop saísse da senzala da cultura e virasse matéria de reflexão, ao retratar criminosos discutindo “Like a virgin”. O pop, com ele, ganha status filosófico. Não por acaso, a saga da Noiva (Uma Thurman) tem como epígrafe um ditado Klingon, pinçado de “Star Trek”.
Após um hiato de cinco anos sem dirigir, entre os anos 1990 e 2000, ele retornou abrindo uma segunda trilogia, quase barroca em seus excessos e antíteses morais, mais preocupada com a potência da imagem do que com a força da palavra. Ela encontra em “Django livre” seu ápice formal. Para além das referências que fazem o deleite dos cinéfilos, a começar pela citação à canção-tema de “Django” (1966), na voz de Rocky Roberts, o faroeste rodado em locações no Wyoming, na Califórnia e na Louisiana, por US$ 100 milhões, demarca o ápice do refinamento plástico buscado pelo cineasta a partir dos volumes 1 e 2 de “Kill Bill” (2003, 2004).

Com o já citado périplo revanchista da Noiva Thurman, Tarantino passou a fazer da vingança uma fagulha para incendiar o tema que virou seu norte : o resgate de honras maculadas por agentes de um poder não institucionalizado. Em “Kill Bill” era o gangsterismo, encarnado no chefão vivido por David Carradine. Em “Bastardos Inglórios” (2009), vinha o intervencionismo nazista. Já “Django livre” põe em foco os escravocratas do Sul dos EUA, potencializados numa atuação de brutalidade ascendente por Leonardo DiCaprio (um ator na flor da maturidade). E todos os três filmes são construídos tendo como espelho o cinema de Sergio Leone (1929-1989), e não apenas na semelhança dos planos gerais e closes. Essa relação especular vem sobretudo em sua poética arqueológica (quase proustiana) de historicizar a formação de uma nação para entender suas cicatrizes políticas contemporâneas. Cicatrizes que encontraram na Hollywood dos deuses supremos de Tarantino – Howard Hawks, Sam Peckinpah e John Carpenter – a educação pela pedra do humanismo. Uma pedra afiada, que se arremessa agora contra a caretice do moralismo atual, disfarço de correção política.