RODRIGO FONSECA
Grandes diretores brasileiros já abriram o Festival do Rio no passado, como Daniel Filho, Bruno Barreto, Miguel Faria Jr., Arnaldo Jabor (1940-2022), Breno Silveira (1964-2022), mas, este ano, a carioquice que inaugura a maratona cinéfila carioca virá de fora, da Espanha, terra natal do madrilenho Fernando Trueba e do valenciano Javier Mariscal. Vem deles uma animação capaz de eletrizar, mas também de provocar aquele enlevo que só a bossa nova causa, ao recriar um dos episódios mais trágicos da MPB: o desaparecimento do ás do piano Tenório Jr. (1941-1976) durante uma passagem por uma Argentina em fase ditatorial. “Atiraram no Pianista” é a tradução do longa-metragem de verve investigativa da dupla responsável por “Chico y Rita” (concorrente ao Oscar de Melhor Filme Animado de 2012), chamado lá fora de “Dispararon al Pianista” e “They Shot The Piano Player”. Os dois títulos figuram no catálogo do Festival de San Sebastián, cidade no norte espanhol onde os cineastas foram aplaudidos esta noite. Para os cariocas na plateia há o prazer extra de ouvir Tony Ramos falando inglês, emprestando a voz a um dos elementos centrais de uma trama capaz de revisitar ícones de nosso cancioneiro.
Com design de personagem concebida pelo maior quadrinista do país na atualidade, Marcello Quintanilha (“Tungstênio”), “Atiraram no Pianista” tem uma direção de arte exuberante, de traço plural, capaz de fundir ficção, documentário e docudrama, preservando a essência de cada um dos formatos acima sem abrir mão do encantamento o desenho animado consegue imprimir mesmo nos enredos mais soturnos. A primeira parte do filme é uma aula de música ao seguir os passos de um jornalista americano (no gogó de Jeff Goldblum, de “A Mosca”) em busca do paradeiro de Tenório, ouvindo sua mulher, uma namorada e colegas ilustres. Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Gilda Mattoso, Caetano Veloso, João Donato (1934-2003) e Toquinho falam no processo investigativo do repórter estadunidense, que teve tempo de ouvir o poeta Ferreira Gullar (1930-2016). O personagem de Tony, João, é quem guia o protagonista na maioria desses encontros. A segunda parte, com mais tom de teoria conspiratória, passa-se na Argentina. Ferreira faz um balanço sintético arrebatador do que se passou com Tenório a partir de um episódio envolvendo uma vidente. As vozes são dos próprio músicos e escritores, colhidas por Trueba e transposta para o potente roteiro de sua autoria. No dia 5 de outubro, o Festival do Rio vai ter a chance de provar da mesma “água de beber” que deslumbrou Donostia (San Sebastián, em basco), em sequências de canjas instrumentais que resgatam o melhor da experimentação do músico desaparecido ao piano.
Trueba conquistou prestigio mundial com “Belle Epoque”, ganhador do Oscar em 1994. Mas sua obra une tanto documentários sobre a música latina (“Calle 54”, “O Milagre do Candeal”) quanto RomComs (“Quero Dizer Que Te Amo”), passando por longas de teor político do mais alto calibre, como “El Olvido Que Seremos” (2020). É a essa tradição mais tensa que o longa de abertura do Festival do Rio se filia, com toda a sua carioquês de estipe ibérica.