RODRIGO FONSECA
Zora Yonara, porta-voz do Zodíaco no “Show do Antonio Carlos”, na Rádio Globo dos anos 1990, costumava dizer: “amor é uma palavra pra quem sabe dar valor”. Sábia ela. “Tá Escrito”, que estreia neste fim de semana, compartilha dessa sabedoria. Seu diretor, Matheus Souza, dá valor ao “gostar”, ao “amar”. Ele sempre encontrou no querer o ponto cardinal mais precioso de sua obra, ciente de que a Natureza é fogo, água, terra, ar e… sobretudo, coração. Veremos agora o filme mais requintado plasticamente de sua carreira. É um filme vitaminado pela dionisíaca fotografia de Lícia Arosteguy, que chega às telas nesta quinta-feira, e tem fôlego pra virar sucesso, bastante, à força da mitificação de sua protagonista, uma Larissa Manoela com ares de Meg Ryan. Porém, seu leque de proficiências vai além do desempenho dela, que tem solidez de sobra. Que Larissa tem brilho, talento e muito (mas muito) carisma é um fato inalienável. Fora isso, na atual empreitada, a atriz (no gerúndio de sua maturidade) esculpe camadas doídas numa heroína capaz de se esgueirar pelo front da comédia romântica e fincar bem os pés na crônica de costumes. É esse o terreno sinuoso no qual o realizador dessa divertida trama sobre astros em convulsão expressa uma voz autoral há 15 anos.
Dramaturgo e cineasta, Matheus despontou como celebridade da Geração Ctrl + Alt + Del na primeira década do século XXI, à luz de “Apenas o Fim”. Ganhou o Prêmio Especial do Júri da Première Brasil do Festival do Rio 2008 com o longa-metragem e conquistou pra si um fã ilustre (que virou seu mestre) na comovente sessão do filme no Cine Odeon: Domingos Oliveira (1935-2019). O rapsodo por trás de “Separações” (2002) e “Todas as Mulheres do Mundo” (1966) acreditava que não é possível se esconder da Vida. “Se você se enfiar de baixo da cama para fugir de problemas, ela se esgueira sob seu colchão, acha você, tira você de lá e te oferece uma nova chance”, poetizava Domingos, zombando da inércia deste insensato mundo. Ele enxergou percepções similares no olhar de Matheus, fez dele seu ator e seu parceiro de criação. Mas Matheus fez fotossíntese e ramificou em galhos próprios.

“Tá Escrito” é um filme que verdeja vontade de evolução, calçando-se numa engenharia de som fulgurante. A trajetória do cineasta costumava ser mais calçada em verbos do que em inquietações imagéticas. Ele sempre se quis um artista da palavra. Mas, até diretores autores amadurecem e, no verão de sua estética, ele verdeja novas hipóteses de discurso fílmico. Mais ambicioso na forma, ele alcança uma dimensão de espetáculo saborosa. Faz um filme vívido.

Se você for um prevent sênior lá pela casa dos 40 anos, tendo crescido num tempo em que a “Sessão da Tarde” exibia “Rambo II: A Missão” e os sábados traziam “Sessão Trinity”, com Bud Spencer e Terence Hill, boa parte das expressões idiomáticas usadas em “Tá Escrito” vai te escapar. As gírias ali vão parecer gaélico aos seus ouvidos, ou alguma outra língua indecifrável. Mas isso não quer dizer que a delicadíssima fotografia de Lícia, somada a um retrato agridoce da vida familiar, não crie uma universalidade. O mundo dos millenials apresentado a nós por Matheus é universal. Bate, entra e fica. “Eu Não Faço a Menor Ideia do Que Eu Tô Fazendo Com a Minha Vida”, lançado por ele no Festival de Gramado de 2012, é uma joia que o Tempo nunca arranhou. Dá pra vê-lo via HBO Max e Apple TV. Acessa lá. É filme que cura. É filme que faz a gente ver outras pluralidades do cinema brasileiro para além da sociologia.

Trazendo desse filmaço, lançado há onze anos, uma aposta no pop, Matheus adentra o terreno da fantasia em “Tá Escrito”. Joga holofotes sobe uma astrônoma em eclipse pessoal: Alice, papel de Larissa. Ela mora com a mãe (Karine Teles, perfeita em cena), e com o irmão (Kevin Vechiatto), que faz de tudo para atazanar sua vida. Seu sonho é conquistar o primeiro emprego e ir morar com o namorado (André Luiz Frambach). Mas seus planos vão por água abaixo quando ele termina o relacionamento com a moça para se dedicar à carreira. Em fase de derrota convulsiva, ela recebe um livro mágico que promete tornar realidade qualquer previsão astrológica escrita em suas páginas sem pautas. Com o poder de influenciar a todos, Alice se torna um fenômeno online, mas também deixa o mundo ao seu redor de cabeça para baixo. Bagunça até o miocárdio de um dublê de empresário que almeja transformá-la em celebridade, Pedro. Trata-se de um oásis engravatado de fofura que dá ao ator Victor Lamoglia a chance de dar ao nosso audiovisual um Tom Hanks apaixonado pra chamar de seu. Lamoglia é o sol que ilumina o estudo de Matheus sobre o limite acalorado que transforma um abraço em abrigo.

Rodeado de bons personagens, no roteiro assinado por ele com Thuany Parente e Mariana Zatz, Matheus almeja o circuitão falando (com graça) de jovens com a língua dos jovens mais jovens que a juventude jovializou. É trava-língua onde o coração dos jovens pisa no freio. É soltinho onde os miocárdios se entregam à fluidez. Enfim, Matheus sabe ouvir, deixar falar e preservar a coloquialidade de outrem. Sublinhe aí, em qualquer análise do longa, o primor que é a direção de arte de Fernanda Teixeira e a inspirada atuação de Nill Marcondes (hoje um dos nossos atores de mais amplo ferramental dramático) como um bamba da astronomia.