RODRIGO FONSECA
Embrulhado num robe monástico vermelho, o protagonista de “Abiding Nowhere”, narrativa anfíbia com um pulmão a respirar cinema e outro a expirar videoarte, abriu caminhos a passos lentos para o regresso do realizador malaio radicado em Taiwan Tsai Ming-liang à Berlinale. É um longa-metragem de 79 minutos rodado nos EUA com base num projeto on the road de essência metafísica do multiartista consagrado com o Leão Ouro por “Vive L’Amour”. Um outro cult de sua carreira, “O Sabor da Melancia” (2005), está em projeção no evento alemão, na Berlinale Classics, em cópia nova, num gesto de preservação de sua memória.
“Não seria capaz de rodar hoje certos planos que filmei na juventude, por não ter mais a força que tinha, por estar mais interessado numa trança da linguagem cinematográfica com as artes visuais e por estar com a mentalidade mais jovial hoje do que ela era décadas atrás”, disse Tsai ao Lab Pop em Berlim, onde seu filme, exibido em sessão hors-concours, gerou debandada pelo desapego pleno a convenções ás quais a tela grande ficou refém. “Num tempo em que imagens são consumidas em suportes digitais variados, eu me apego à tela grande como um lugar de ritual”.
Muso do cineasta, Lee Kang-Sheng passa toda a duração de “Wu Suo Zhu” (título original de “Abiding Nowhere” a trafegar por Washington, a partir de um mergulho num rio, em área silvestre, onde imerge, emerge e flutua. Sua cabeça rapada e sua túnica rubra humilde lhe dão um perfil de monge. Sem palavras, atento ao esplendor da Natureza numa comunhão quase espiritual com ela, o sujeito entra na estação de trens, adentra uma igreja e passeia por um museu. Outro estranho (vivido por Anong Houngheuangsy) também se desloca pela cidade. Não sabemos se está ou não a seguir o caminhante, mas traça seu próprio trajeto a tangenciar os passos do protagonista. Ora pensamos que são dois lados de uma mesma alma, fraturados pela instância corpórea. Ora pensamos que são indivíduos diferentes, que se esbarram numa imensidão natural avessa ao progresso. Essa é a premissa que Tsai tirou dos relatos sobre Xuanzang, um monge budista da dinastia Tang que viajou milhares de quilómetros a pé entre a China e a Índia.
Cansaço físico é um sintoma da fase outonal em que o diretor malaio radicado em Taiwan Tsai Ming-liang confessa estar, aos 65 anos de uma vida devotada à arte de filmar.
“Hoje só me interessa aquilo que desindustrialize a expressão audiovisual”, disse Tsai em entrevista ao Lab Pop em agosto, no Festival de Locarno, na Suíça, aonde foi receber um tributo pelo conjunto de sua obra: o troféu Pardo Alla Carriera.

O herói monástico de “Abiding Nowhere”

Após uma série de telefilmes feitos no fim da década de 1980, Tsai partiu para a direção de longas-metragens feitos para sala de projeção a partir de 1992, com “Rebeldes do Deus Neon”, que lhe deu cinco prêmios em mostras em Turim, Nantes e Tóquio. Soma atualmente a marca de 70 troféus. Um de seus trabalhos mais recentes ganhou o Teddy, a mais famosa láurea LGBTQIA+ das telas, dada a ele na Berlinale de 2020, por “Days”.
“Foi um filme de baixo orçamento, equipe bem pequena, que mostra o sexo como uma forma de analgésico para a solidão de um homem já em tempo de velhice. Acho que a minha chegada aos 60 me deu a curiosidade de entender o que muda no meu corpo”, diz o diretor, fã assumido do cinema de François Truffaut e da Nova Vaga Alemã. “Provar da liberdade é o que me move a seguir criando”.
Na competição oficial pelo Urso de Ouro de 202, o grande filme do festival, desde sua abertura, na última quinta-feira, é “La Cocina”, do mexicano Alonso ruizpalacios, que aborda os bastidores de um restaurante nova-iorquino apinhado de imigrantes. Um deles, dos mais queridos pelo coletivo de profissionais, o cozinheiro Pedro Raúl Briones (perfeito em cena), entra em parafuso por conflitos amorosos com a namorada grávida, a atendente Julia (Rooney Mara). Destaca-se ainda a produção germânica “Sterben”, de Mathias Glasner, uma dramédia sobre a finitude. O colombiano ‘Pepe”, cujo protagonista é um hipopótamo levado da África para a América Latina, num capricho do narcotráfico, também tem chance de impressionar o júri presidido pela atriz queniana Lupita Nyong’o.