Rodrigo Fonseca
Indicado a prêmios em festivais em Valladolid e Chicago, “A Batalha da Rua Maria Antônia” se impôs na telona do Cine Odeon, na tarde de sexta, a partir de um jogo de armar de 21 planos-sequência, que ilustra uma provocação de Jacques Derrida (1930-2004): “Para fingir, eu realmente faço a coisa: eu, portanto, apenas finjo fingir”. No espetáculo que se forma na tela, numa recriação proustiana de 1968 (como se fosse um tempo perdido na lógica da utopia), o mais avassalador dos concorrentes ao troféu Redentor de 2023 (inóspito em seu arranjo nada convencional de ideias), vemos muito “fingidores”. Fingem sob a lógica de Derrida. Uma lógica que o filósofo de origem argelina complementava com a percepção de que “produções em massa não treinam olhares, mas pressupõem de maneira fantasmagórica um olhar já programado”. É impossível não andar por esse arame farpado teórico diante do teatro de máscaras ensaiado por Benjamim (Caio Horowicz), um dos protagonistas, para manter os alunos da Faculdade de Filosofia da USP fora das CNTPs em meio a uma batalha em outubro do “ano que não acabou”. Benjamin encena um jogo de decapitações com seus colegas e, em especial, com uma atormentada professora, Leda (Gabriela Carneiro da Cunha, em estado de graça), a fim de manter inflamado o corpo discente e o docente de sua instituição. É o Tito Andrônico daquele campus em polvorosa, que parece saído de uma peça de Shakespeare em meio a agonia do racha entre grupos.
Na direção de fotografia, Will Etchebehere ricocheteia por planos de triagem de diferentes salas, corredores e centros acadêmicos de uma faculdade encarada, à época, como o ovo da serpente dos inimigos do governo de farda. A montagem de Julia Zakia galvaniza o fluxo de imagens cor de chumbo, penumbrosas, revivificando um pretérito imperfeito, que reside como zumbi no imaginário sócio-político da nação. O meiaoitismo que confinou a intelectualidade nacional ao trauma da repressão, da tortura e da metástase do capitalismo entra no roteiro da diretora de “Amores Urbanos” (2016) como rizoma de brasilidade. A luta histórica de 68 é um espaço de afirmação de identidade. É um ritual que nos baliza pela resistência e que espelhou combates recentes, na Era Bolsonaro. Mas esse ritual despertou bestas e invocou diabos. É o que o filme mostra, sobretudo na figura mefistofélica de Benjamin, construído por Horowicz na interpretação mais charmosa de toda a Première. Onde se lê “charmosa”, inclua complexidades e sinuosidades, num gestual que sugere uma figura manipuladora, num perfil superficialmente heroico. Nada do que Benjamin diz ou faz parece revelar o que de fato sente.
Numa estrutura de edição que assume o número dos planos como um ticking clock, ou seja, um relógio que contabiliza a armação de uma bomba, Vera “encena” a SP do fim dos anos 1960 menos pelos e mais pelas impressões do que o passado teria sido. Concentra tudo num tempo curto, numa noite definitiva. Os personagens enfrentam os ataques do Comando de Caça aos Comunistas vindos do outro lado da rua, da Universidade Mackenzie. Quando o confronto explode, molotovs, pedras, paus e bombas são atirados. É uma narrativa de 24 horas nas quais conflitos afetivos, tensões sexuais, ciúmes e traições ideológicas (concentradas na professora Lea), revisitam o Ontem, um Ontem bem próximo do que vivemos de 2016 a 2022 (antes de Lula ganhar). Um Ontem que lembra “Depois de Maio” (2012), de Olivier Assayas, que se calca também em esperanças perdidas e sonhos que se reciclam.
Num desenho geral, tivemos uma Première que gravita por invisibilidades (“Ana”, de Marcus Vinícius Faustini), potencias periféricas (“A Festa de Léo”), luta contra tabus (“Levante” e “Pedágio”) e uma operação semiótica sobre falar a dor (“O Dia Que Te Conheci”). Nesse quadro, Vera nos deu o trabalho de direção mais ousada. Que o júri não se esqueça desse filmaço na premiação, neste domingo.