Rodrigo Fonseca
Tão dizendo por aí que Cannes vai prestar uma homenagem a Alejandro Jodorowsky, em meio à comemoração dos 90 anos do (escritor, tarólogo, quadrinista, xamã, mas antes de tudo) cineasta: a 72ª edição do festival francês vai de 14 a 25 de maio. No Brasil, o selo Obra-Prima acaba de lançar um box de DVDs com o melhor de sua trajetória como realizador, incluindo o seminal “A gravata” (1957) e o memorável “Fando e Lis” (1968), com Sergio Kleiner e Diana Mariscal. Neste momento de festa para o diretor, livrarias de toda a Europa, sobretudo as especializadas em HQs, estão abarrotando suas estantes com um álbum que se candidata ao posto de best-seller ilustrado de 2019: “The Sons of El Topo”, que o agora nonagenário diretor escreveu e o ilustrado José Ladrönn desenhou. Idealizada em vários volumes (o número definitivo ainda não é sabido), esta graphic novel centrada numa releitura metafísica do Velho Oeste, com Cabala e Nietzsche em seu recheio, é mais do que um fetiche para fãs de quadrinhos: cinéfilos fazem filas nas gibiterias atrás desta continuação de um marco das telas. É nela que Jodorowsky dá continuação a seu filme mais famoso, “El Topo”, que, ao ser lançado em Nova York, em 1970, inaugurou a cultura dos midnight movies, as projeções à meia-noite de filmes considerados pouco apropriados para plateias mais de gosto mais conservador. O próprio diretor – um judeu chileno radicado em Paris – assumia o papel central, o de um pistoleiro místico.
“Nem todo bom quadrinho vive de poesia, assim como nem todo grande filme é onírico, mas a realidade a que nos agrilhoamos, nas últimas décadas, é uma contingência bruta, pautada por referências midiáticas de Hollywood, que nos leva a associar o desejo à violência física”, disse Jodorowsky ao Lab Pop, quando lançou “Poesia sem fim” (2016) em Cannes, iniciando a produção do gibi. “Eu idealizei ‘El topo’ a partir da vontade de fazer um filme sem que eu precisasse pedir permissão para contar o que quisesse, com absoluta liberdade de fantasiar. Passei anos com o desejo de voltar a ele não apenar por haver algo a ser dito sobre aquele caubói errante, mas por estarmos vivendo hoje tempos crus, intolerantes, carentes de desbunde”.

Em 2016, a editora Gryphus lançou no Brasil a coletânea de ensaios “A jornada espiritual de um mestre”, em que Jodorowsky explica a gênese de seu xamanismo, que classifica como “psicomagia” (uma mistura de Freud com signos arcanos). É essa prática xamânica que dá base às páginas da HQ “The Sons of El Topo”, que servirá de base para o novo longa-metragem do diretor, a ser lançado em 2020, no cinquentário de seu personagem mais lendário. Na trama, Caim, filho mais velho do caubói El Topo, pensa em matar o pai, para liberar energias de que o Universo necessita para se expandir espiritualmente, mas desiste de seguir a trilha do ódio. Prefere ir atrás de um irmão, Abel, que não conhece. Começa aí uma jornada regada de magia, sensualidade e chumbo quente.
“Quando ‘El Topo’ ficou pronto, nenhum exibidor viu um pingo de sentido naquilo. Só um amigo meu que era dono de um cinema pornô, o Elgin. Ele me ofereceu a última sessão que tinha. O sucesso da gente, mesmo naquele horário, foi tanto que muitos diretores foram atrás do Elgin querendo exibir seus trabalhos mais autorais na madrugada”, conta Jodorowsky no prefácio do quadrinho, que só nasceu pelo impasse de nenhum distribuidor querer apoiar a volta de El Topo aos cinemas. “Mesmo com o sucesso do primeiro, a continuação era vista com suspeita, o que me levou a contar sua história em desenhos do meu amigo Ladrönn”.

Aluno do mímico Marcel Marceu (1923-2007) e colega de dramaturgos como Fernando Arrabal (autor de “O arquiteto e o imperador da Assíria”), Jodorowsky seguiu sua carreira no cinema com longas como “Santa sangre” (1989) e “A dança da realidade” (2013). No mercado editorial do Velho Mundo, lançou livros sobre misticismo e muitos quadrinhos, como “O Incal”, com o mítico Jean “Moebius” Giraud (1938-2012). Mas “El Topo” ainda é seu cartão de visitas nos grandes festivais do mundo, onde é recebido como um ícone de experimentação nas narrativas audiovisuais e literárias.
“Já trabalhei muito com teatro, no México e na França, ao lado de Arrabal e outros grandes na busca por uma desconstrução dos cânones do palco. Mas uma peça raramente se torna um fenômeno mundial, que consegue alcançar vários lugares ao mesmo tempo, como os filmes fazem, ou os quadrinhos. E existem mensagens que precisam se propagar rápido pelo mundo sem concessão ou sem permissão oficial”, disse Jodorowsky em Cannes. “Escrevo quadrinhos para sobreviver e pelo prazer da invenção. É uma mídia que ainda cultua a fantasia, sem culpa de sonhar e inventar trincheiras de ilusão. Uma ilusão que liberta”.