RODRIGO FONSECA
Como estancar o sangue que provém de uma ferida estética, aberta pela perda de um gigante, no caso, um titã chamado Ney Latorraca? Sua partida, aos 80 anos, ao fim do Natal, inflama o hiato cultural que sua ausência deixa. O único analgésico para atenuar essa dor é reverenciar seu legado, que achou lar no streaming. No Globoplay, tem “TV Pirata”, com a boca mole de seu Barbosa; tem um belo filme – “O Beijo no Asfalto” na versão de 1981 -; e há e um par de novelas – “Vamp”, de 1991, e “O Beijo do Vampiro”, de 2002 – das mais famosas (e mais pops) de seu currículo. Esse repertório traduz todo o esplendor de um ator cuja carreira zombou da caretice institucionalizada no país, não apenas pela escolha de personagens controversos (e imortais), mas, também, por interpretações regadas da mais fina inteligência. Em 2022, ele teve a vida e a obra esmiuçadas nos palcos do Rio no espetáculo “Seu Neyla”, encenado no Riachuelo. É um experimento anfíbio (meio teatro, meio vídeo, meio musical, meio talk-show) da atriz Heloisa Périssé como dramaturga, (bem) escrito por ela com colaboração de Aloísio de Abreu e José Possi Neto, que assinou a direção. Vale resgatar sua fortuna crítica. Numa (oni)presença eletrônica, Ney virava fantasmagoria de si mesmo, como num filme expressionista à la Murnau, encarnando um Nosferatu dele próprio. Celebrizado sob a alcunha que deu título ao espetáculo, Seu Neyla sempre fez da irreverência um aríete contra a ignorância. Hoje, na Amazon Prime, é possível apreciar seu ferramental cênico em “Ele, O Boto” (1987), de Walter Lima Jr. No ClaroTV+, encontra-se o belíssimo “Introdução à Música do Sangue” (2015), de Luiz Carlos Lacerda, do qual Ney foi protagonista. No Porta Curtas, rola o seminal “A Mulher do Atirador de Facas” (1988), de Nilson Villas Bôas.